Uma interessante dica para professores e estudantes de paleontologia pode ser a foto ao lado, que apareceu no Earth Science Picture of the Day do último dia 10. Foi tirada pelo o físico e astrônomo amador Mário Sérgio Teixeira de Freitas, de Curitiba. Parece a marca de um fóssil, talvez de alguns milhões de anos, não é? Mas é apenas o "registro" de um raminho de árvore com um par de folhas que caiu no cimento fresco em uma calçada de Brasília.
A ideia do Mário, professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), é que o processo de formação desse baixo-relevo tem algumas semelhanças com o da constituição de fósseis reais e por isso pode servir de metáfora para ajudar a compreensão dos fenômenos naturais por detrás dos mesmos. Ou seja, entender um processo natural de pelo menos 10 mil anos, praticamente inacessível à percepção humana, por meio de um análogo enolvendo escalas de tempo muito menores e perfeitamente assimiláveis. Ora, as folhas, levadas pelo vento, simplesmente "pousaram" no cimento Portland fresco, que rapidamente secou, perpetuando suas marcas; depois, provavelmente, as intempéries destruíram seus tecidos, deixando apenas a impressão no chão. O resultado foi um registro suficientemente detalhado para que se possa identificar sua origem, por meio da observação da forma das nervuras: trata-se de folhas de goiabeira!
De brinde, a analogia também reforça a necessidade de se distinguir os inúmeros fósseis falsos dos reais, um problema sério tanto para paleontólogos profissionais como para os amantes desses fascinantes registros de eras arcanas.
Texto reproduzido de A Física se Move.
domingo, 13 de março de 2011
sexta-feira, 11 de março de 2011
Líbia: a grande inflexão
Impressionante como as percepções sobre o conflito na Líbia mudaram da água para o vinho nos últimos dois dias. Jornalistas e até funcionários da inteligência (como James Clapper, dos EUA) começam a achar que Gadafi vencerá a guerra. Enquanto isso, o avanço das articulações para um bloqueio aéreo, leia-se bombardeio, também parece estar chegando num impasse. A Itália disse que não apoiará intervenção militar. Muito conveniente falar isso agora quando a maré parece virar a favor do ditador líbio - pois, se ele ficar, Roma tem todo o interesse que ele não retalie deixando hordas de refugiados fugidos dos sanguinários conflitos africanos irromperem pelo país adentro. Era Kadafi que os impedia de atravessar o Mediterrâneo, em troca de apoio de Berlusconi.
Já os Estados Unidos estão com todo o aparato militar na frente da costa líbia, mas dizem que só intervirão com apoio da ONU. É possível que, se as forças leais a Gadafi começarem a avançar demais, eles intervenham de qualquer maneira. Mas é possível também que não - e isso indicaria um enfraquecimento da posição geopolítica estadunidense, em relação ao período pré-invasão do Iraque (2003), quando a ONU lhes parecia bem mais "atropelável". Legado do desastroso governo Bush filho. Isso, mesmo que há algumas semanas a União Europeia tenha esperado os EUA romperem com Gadafi para fazer o mesmo, indicando a volta da ascendência estadunidense sobre os europeus, já superada a crise de 2003. Aliás, neste momento, o discurso de Nicholas Sarkozy, o presidente da França, está bem mais belicoso que o de Barack Obama.
Os russos, tem que combinar com os russos!
O Conselho de Segurança da ONU, por sua vez, tem seus famosos cinco membros com poder de veto, entre os quais China e Rússia. Terão eles interesse em chancelar uma intervenção militar? Em especial, o que fará a Rússia? É verdade que ela suspendeu sua venda de armas para Gadafi, mas também é verdade que se aproximou bastante do ditador nos últimos anos. Sim, a Líbia pode ser estratégica para a Rússia. Primeiro, porque é uma cabeça-de-ponte na África e está todo mundo disputando aquele continente - estadunidenses, europeus (estes mais no norte), chineses (no centro e sul), indianos (no sudeste) e até brasileiros (em Angola e Moçambique, principalmente). Quem tem ganas de retomar um pouco da influência em nível global que tinha na Guerra Fria, precisa necessariamente investir na África.
E parece que é isso que a Rússia quer, expandir sua esfera de influência. Isso produz uma disputa com o Ocidente que se manifesta com temperaturas diferentes em diferentes pontos do globo - às vezes incendiando-se, como na guerra com a Geórgia em 2008. Além disso, a Rússia tem se aproximado de alguns desafetos dos EUA, como a Venezuela, e isso pode ser também uma estratégia: já que não tem cacife para disputar com os estadunidenses os países que já estão dentro da sua esfera, os russos fincam "cunhas diplomáticas" onde essa influência ainda não chega com tanta força ou é repelida.
Enfiaram uma na Líbia, de frente para o flanco sul do bloco da OTAN e perto do gargalo do Mediterrâneo entre a Itália e a Tunísia (veja o mapa abaixo). Se a Rússia conseguisse cooptar o norte da África, teria "cercado" o bloco pelo leste e pelo sul. Afinal, a expansão do bloco para o leste está chegando nos seus limites e não é absurdo imaginar que o passo lógico seguinte seria expandirem-se para o sul, para o norte da África - Marrocos, Tunísia e Egito. Mas, com a cooptação de Gadafi, a Rússia meteu uma garfada bem no centro desse filé (e agora as revoltas acabaram com as esperanças de estabilidade e lançaram qualquer esperança da OTAN mais algumas décadas para o futuro).
Massacre aéreo
Quanto aos rebeldes líbios, o grande problema é que sua luta deixou de ser uma guerra de insurgênica - para a qual não existe modelo teórico disponível para garantir vitória das forças regulares - e se tornaram uma guerra mais clássica, com frentes de combate geograficamente definidas - para a qual a receita de bolo é quase infalível: quem tem o domínio dos ares vence e ponto. Foi assim que a Inglaterra evitou ser invadida pela Alemanha na Segunda Guerra: derrotou a Luftwaffe nos ares. É por isso que os EUA bombardeiam implacavelmente seus inimigos antes de qualquer invasão por terra. E eis que Gadafi agora tem o domínio total dos ares em todo o seu território e o usa para massacrar impiedosamente os opositores.
Ou seja, as potências só poderiam evitar o pior com o tal bloqueio aéreo. Mas é possível que os rebeldes colapsem antes do tempo hábil para uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, que precisa de articulações e sondagens prévias de bastidores para se garantir que não haverá um fiasco. Corre-se o risco de, mais uma vez, o Ocidente ficar olhando uma tragédia humanitária e geopolítica acontecer a poucos quilômetros do seu nariz sem fazer nada.
O resultado será péssimo não só para a Líbia, mas para o conceito de multilateralismo: afinal, quando os EUA finalmente resolvem fazer do jeito que lhes dizem que é para fazer - sem ataques unilaterais -, o resultado seria a tragédia. Claro que a conclusão é ilusória - tragédias são os resultados de ações militares unilaterais, como no Iraque em 2003. E há mais: um desfecho pró-Gadafi seria também um sério baque nos movimentos antiautoritários em todo o mundo árabe.
Já os Estados Unidos estão com todo o aparato militar na frente da costa líbia, mas dizem que só intervirão com apoio da ONU. É possível que, se as forças leais a Gadafi começarem a avançar demais, eles intervenham de qualquer maneira. Mas é possível também que não - e isso indicaria um enfraquecimento da posição geopolítica estadunidense, em relação ao período pré-invasão do Iraque (2003), quando a ONU lhes parecia bem mais "atropelável". Legado do desastroso governo Bush filho. Isso, mesmo que há algumas semanas a União Europeia tenha esperado os EUA romperem com Gadafi para fazer o mesmo, indicando a volta da ascendência estadunidense sobre os europeus, já superada a crise de 2003. Aliás, neste momento, o discurso de Nicholas Sarkozy, o presidente da França, está bem mais belicoso que o de Barack Obama.
Os russos, tem que combinar com os russos!
O Conselho de Segurança da ONU, por sua vez, tem seus famosos cinco membros com poder de veto, entre os quais China e Rússia. Terão eles interesse em chancelar uma intervenção militar? Em especial, o que fará a Rússia? É verdade que ela suspendeu sua venda de armas para Gadafi, mas também é verdade que se aproximou bastante do ditador nos últimos anos. Sim, a Líbia pode ser estratégica para a Rússia. Primeiro, porque é uma cabeça-de-ponte na África e está todo mundo disputando aquele continente - estadunidenses, europeus (estes mais no norte), chineses (no centro e sul), indianos (no sudeste) e até brasileiros (em Angola e Moçambique, principalmente). Quem tem ganas de retomar um pouco da influência em nível global que tinha na Guerra Fria, precisa necessariamente investir na África.
E parece que é isso que a Rússia quer, expandir sua esfera de influência. Isso produz uma disputa com o Ocidente que se manifesta com temperaturas diferentes em diferentes pontos do globo - às vezes incendiando-se, como na guerra com a Geórgia em 2008. Além disso, a Rússia tem se aproximado de alguns desafetos dos EUA, como a Venezuela, e isso pode ser também uma estratégia: já que não tem cacife para disputar com os estadunidenses os países que já estão dentro da sua esfera, os russos fincam "cunhas diplomáticas" onde essa influência ainda não chega com tanta força ou é repelida.
Enfiaram uma na Líbia, de frente para o flanco sul do bloco da OTAN e perto do gargalo do Mediterrâneo entre a Itália e a Tunísia (veja o mapa abaixo). Se a Rússia conseguisse cooptar o norte da África, teria "cercado" o bloco pelo leste e pelo sul. Afinal, a expansão do bloco para o leste está chegando nos seus limites e não é absurdo imaginar que o passo lógico seguinte seria expandirem-se para o sul, para o norte da África - Marrocos, Tunísia e Egito. Mas, com a cooptação de Gadafi, a Rússia meteu uma garfada bem no centro desse filé (e agora as revoltas acabaram com as esperanças de estabilidade e lançaram qualquer esperança da OTAN mais algumas décadas para o futuro).
Massacre aéreo
Quanto aos rebeldes líbios, o grande problema é que sua luta deixou de ser uma guerra de insurgênica - para a qual não existe modelo teórico disponível para garantir vitória das forças regulares - e se tornaram uma guerra mais clássica, com frentes de combate geograficamente definidas - para a qual a receita de bolo é quase infalível: quem tem o domínio dos ares vence e ponto. Foi assim que a Inglaterra evitou ser invadida pela Alemanha na Segunda Guerra: derrotou a Luftwaffe nos ares. É por isso que os EUA bombardeiam implacavelmente seus inimigos antes de qualquer invasão por terra. E eis que Gadafi agora tem o domínio total dos ares em todo o seu território e o usa para massacrar impiedosamente os opositores.
Ou seja, as potências só poderiam evitar o pior com o tal bloqueio aéreo. Mas é possível que os rebeldes colapsem antes do tempo hábil para uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, que precisa de articulações e sondagens prévias de bastidores para se garantir que não haverá um fiasco. Corre-se o risco de, mais uma vez, o Ocidente ficar olhando uma tragédia humanitária e geopolítica acontecer a poucos quilômetros do seu nariz sem fazer nada.
O resultado será péssimo não só para a Líbia, mas para o conceito de multilateralismo: afinal, quando os EUA finalmente resolvem fazer do jeito que lhes dizem que é para fazer - sem ataques unilaterais -, o resultado seria a tragédia. Claro que a conclusão é ilusória - tragédias são os resultados de ações militares unilaterais, como no Iraque em 2003. E há mais: um desfecho pró-Gadafi seria também um sério baque nos movimentos antiautoritários em todo o mundo árabe.
quinta-feira, 10 de março de 2011
Como funciona um diferencial de automóvel
Sem palavras! Este vídeo é a melhor explicação sobre como funciona um diferencial de automóvel que já vi até hoje. Na verdade, foi a primeira vez que consegui compreender de verdade como funciona. O diferencial é um sistema de engrenagens no eixo traseiro que serve para permitir que as rodas possam girar com velocidades diferentes. Isso porque, quando o carro faz a curva, a roda de dentro da curva gira mais devagar que a de fora. Se não, uma delas vai derrapar. O pepino é: se há só um motor, como fazer com que as rodas girem com velocidades diferentes - e de modo que essa diferença não seja pré-determinada, mas dependa do que você resolve fazer com o carro? A explicação é fascinante. E o extraordinário é que é um vídeo dos anos 1930! Ao que parece, de lá para cá ninguém conseguiu imaginar jeito melhor de explicar. Dica de Leo Deppe pelo Facebook!
quarta-feira, 9 de março de 2011
O "simples extraordinário" da óptica atmosférica
É bom ter um irmão astrônomo e meteorologista amador. Aprendi com sua turma do Clube de Astronomia do Paraná que borrões que vemos cotidianamente no céu, de dia ou de noite, podem ser fenômenos atmosféricos raros e que ocultam fenômenos naturais ao mesmo tempo simples e notáveis. É só saber interpretá-los.
Um exemplo. Já viram um sutil brilho que aparece ao redor da nossa sombra sobre a grama ou num capinzal, ou mesmo num chão arenoso? Não sabem do que estou falando? Vejam as fotos ao lado (parte de cima), tirada deste site. O brilho aparece ao redor da cabeça (ou, se for foto, ao redor da máquina fotográfica...), em geral no fim da tarde, quando a sombra está bem longa sobre o chão.
Não é a "aura" de ninguém, é apenas o seguinte. A parte ao redor da cabeça está, naturalmente, sendo vista com o Sol bem atrás da gente. A luz do Sol chega ali quase paralelamente à linha de visada; por isso, nessa pequena parte vemos pouco as penumbras que existem dos lados de cada grãozinho do chão. Já no resto da área, ao redor, estamos vendo obliquamente - e aí as penumbras laterais dos grãozinhos são mais visíveis. Veja os diagramas ao ao lado, que mostram três casos - com grãos grandes, médios e bem miúdos. O resultado é um contraste: onde vemos menos penumbra, parece-nos mais claro. Daí a mancha brilhante.
Experimente, quando estiver sobre um gramado no fim de tarde. É legal. Fica mais fácil ver se você estiver em movimento.
Isso é algo muito comum, só que a maioria de nós nem percebe. Há outras coisas bem raras. Hoje chegou-me uma foto do meu irmão, mostrando um brilhozinho aparentemente mínimo, que ele viu de um avião quando descia em Porto Alegre. Não vou pôr aqui, porque tem copyright. Cliquem lá. Está no meio da parte inferior, tem a forma de uma sutil linha vertical brilhante. Passaria totalmente despercebido por mim, ou eu acharia que era defeito da minha própria visão, ou qualquer outra coisa sem a menor importância. No entanto, é um fenômeno tão incomum que aquela foto inocente foi publicada na seção de imagens do dia do site Atmospheric Optics, referência no assunto.
A origem desse fenômeno é exatamente a mesma do brilho ao redor da sombra no gramado ou no chão pedregoso no fim de tarde. Só que, ao invés de gramado, há uma plantação. Acontece que esse efeito é em geral circular. Um com forma de linha, como o Fabiano observou, precisa de um alinhamento muito perfeito entre as plantinhas, o que é muito difícil de acontecer. Por isso o pessoal do Atmospheric Optics ficou impressionado.
Bom, tudo isso pode ser um pouco difícil de entender, mas, depois que a gente compreende, a coisa fica tão simples quanto extraordinária. A união do simples e do extraordinário provoca no espírito - no meu, pelo menos - uma sensação... sei lá, um misto de prazer estético e prazer intelectual muito difícil de descrever.
O meu estado de espírito se refletiu na resposta que lhe mandei por e-mail:
P.S. - A versão original foi corrigida, inclusive com a troca das imagens, seguindo sugestões do físico e astrônomo amador Mário Sérgio Teixeira de Freitas - que também tem uma página que inclui imagens de óptica atmosférica.
Um exemplo. Já viram um sutil brilho que aparece ao redor da nossa sombra sobre a grama ou num capinzal, ou mesmo num chão arenoso? Não sabem do que estou falando? Vejam as fotos ao lado (parte de cima), tirada deste site. O brilho aparece ao redor da cabeça (ou, se for foto, ao redor da máquina fotográfica...), em geral no fim da tarde, quando a sombra está bem longa sobre o chão.
Não é a "aura" de ninguém, é apenas o seguinte. A parte ao redor da cabeça está, naturalmente, sendo vista com o Sol bem atrás da gente. A luz do Sol chega ali quase paralelamente à linha de visada; por isso, nessa pequena parte vemos pouco as penumbras que existem dos lados de cada grãozinho do chão. Já no resto da área, ao redor, estamos vendo obliquamente - e aí as penumbras laterais dos grãozinhos são mais visíveis. Veja os diagramas ao ao lado, que mostram três casos - com grãos grandes, médios e bem miúdos. O resultado é um contraste: onde vemos menos penumbra, parece-nos mais claro. Daí a mancha brilhante.
Experimente, quando estiver sobre um gramado no fim de tarde. É legal. Fica mais fácil ver se você estiver em movimento.
Isso é algo muito comum, só que a maioria de nós nem percebe. Há outras coisas bem raras. Hoje chegou-me uma foto do meu irmão, mostrando um brilhozinho aparentemente mínimo, que ele viu de um avião quando descia em Porto Alegre. Não vou pôr aqui, porque tem copyright. Cliquem lá. Está no meio da parte inferior, tem a forma de uma sutil linha vertical brilhante. Passaria totalmente despercebido por mim, ou eu acharia que era defeito da minha própria visão, ou qualquer outra coisa sem a menor importância. No entanto, é um fenômeno tão incomum que aquela foto inocente foi publicada na seção de imagens do dia do site Atmospheric Optics, referência no assunto.
A origem desse fenômeno é exatamente a mesma do brilho ao redor da sombra no gramado ou no chão pedregoso no fim de tarde. Só que, ao invés de gramado, há uma plantação. Acontece que esse efeito é em geral circular. Um com forma de linha, como o Fabiano observou, precisa de um alinhamento muito perfeito entre as plantinhas, o que é muito difícil de acontecer. Por isso o pessoal do Atmospheric Optics ficou impressionado.
Bom, tudo isso pode ser um pouco difícil de entender, mas, depois que a gente compreende, a coisa fica tão simples quanto extraordinária. A união do simples e do extraordinário provoca no espírito - no meu, pelo menos - uma sensação... sei lá, um misto de prazer estético e prazer intelectual muito difícil de descrever.
O meu estado de espírito se refletiu na resposta que lhe mandei por e-mail:
"Quando o astronauta desceu na Lua, minha idade atrás, disseram que os namorados tinham perdido sua grande inspiração, que então a fonte mágica do belo luar noturno que iluminava as almas estaria reduzido a um pedaço de minério girando parado ao redor do nada e ainda por cima espetado por uma bandeira dos EUA, tal como uma seta geopolítica atravessando um coração e transformando-o em pedra morta. No entanto, o pedaço de pedra continua fazendo lobos e namorados uivarem exatamente do mesmo jeito e, enquanto, isso os "insensíveis" astrônomos uivam para luzes que iluminam regiões do espírito de cuja existência a maioria dos namorados nem desconfia..."Tem mais uma porção de fotos do Fabiano Diniz no seu site, cheio de explicações sobre por que os fenômenos acontece - arco íris, halos etc. - ou então no Flickr.
P.S. - A versão original foi corrigida, inclusive com a troca das imagens, seguindo sugestões do físico e astrônomo amador Mário Sérgio Teixeira de Freitas - que também tem uma página que inclui imagens de óptica atmosférica.
terça-feira, 8 de março de 2011
Dia da Mulher: tudo será como antes?
Convido os leitores a apreciarem este excelente post, publicado há exatamente um ano no blog da jornalista Sabine Righetti. É um dos melhores textos sobre os direitos das mulheres que já li. Pela simples razão que ilustra cabalmente como esses direitos não se referem apenas a acesso a cargos, empregos e legislação sobre aborto e outros temas "femininos" (ainda que estas coisas sejam de importância crucial). Trata-se fundamentalmente de uma postura social (e tem a ver com a figura ao lado). Com ela, o resto decorre.
E o modo como normalmente se "comemora" o Dia Internacional das Mulheres não ajuda em nada. Vejo no elevador um cartaz cheio de elogios, com a expressão "Flores de aço" em destaque. No ano passado, houve uma campanha no Twitter para que os homens deixassem de enviar mensagens para dar lugar às mulheres. Como se as mulheres tivessem problemas com essa rede social virtual.
Qual o problema? O problema é que, em ambos os casos, trata-se de uma atitude anestésica, cujo efeito praticamente se resume a nos dar uma impressão de dever cumprido. Na verdade, um mecanismo para aliviar a "culpa" interna - e que, por isso, trabalha contra a causa. Vamos então todos para casa e agora só nos preocupemos com isso no ano que vem... O túmulo que está a Internet sobre o 8 de março deste ano, em comparação com o ano passado, apenas corrobora tudo isso - estão mais preocupados em ver as semidesnudas do Carnaval.
Então, que atitudes tomar? Para começo de conversa, não é para fazer algo pelas mulheres no dia 8 de março! É para começar a fazer no dia 8 de março e continuar para sempre!
E fazer o quê? O melhor é começar tomando conhecimento das atitudes perniciosas que acontecem, que permeiam nosso comportamento sem que percebamos, que permeiam o discurso das pessoas entre si e nos meios de comunicação de massa. E, para isso, o citado post da Sabine é um ótimo recurso.
Mais: não se trata apenas de uma mudança dos homens. Estamos falando da sociedade como um todo. Há todo um condicionamento cultural que vem desde a primeira infância e que introjeta nas mulheres seu "papel" no mundo (por isso a imagem do início deste texto). A maioria das "vocações" femininas são, na vedade, apenas traços culturais transmitidos desde crianças. Isso é feito tanto por homens quanto por mulheres. "É a sociedade que deve mudar, e não só os homens." Quem disse isso foi a israelense Ada Yonath, prêmio Nobel de Química (não por coincidência, numa entrevista para a mesma Sabine Righetti, publicada na Folha).
Para se ter uma ideia da superficialidade com que se tratam as questões "femininas", vejam o que diz a filósofa Marilena Chauí sobre as verdadeiras causas do aborto neste pequeno trecho de vídeo de um programa Roda Viva de 1989 - são só dois minutos. O problema é muito mais profundo do que as atuais tentativas de legislação procuram alcançar.
Protagonismo
Para ilustrar a importância da mudança na postura social, vejam só o que aconteceu no Paraguai após a famosa Guerra do Paraguai de 1864-1870. O país foi totalmente devastado, principalmente pelas tropas brasileiras, a ponto do fim do conflito haver no país quatro quatro mulheres para cada homem, e estes em geral velhos ou crianças. Então, restou às mulheres reconstruir tudo.
O historiador paraguaio Carlos Gómez Florentín estudou isso. Diz ele, textualmente nesta entrevista: "Sem dúvida, as mulheres reconstruíram a nação. (...) As mulheres foram as grandes atrizes econômicas e sociais." Por "atrizes", refere-se ao conceito de "ator social", aquele que "protagoniza" um processo social.
Porém, em seguida, ele emenda: "A pergunta que requer uma explicação (...) é por que não ocorreu o mesmo no plano político. E, secundariamente, por que foram, com o tempo, perdendo esse protagonismo econômico?"
É aí que eu queria chegar. Ouso uma resposta hipotética: decerto porque não houve uma mudança correspondente na postura social. No nível da sua percepção social, as mulheres provavelmente estavam apenas esperando os homens voltarem.
Não foi o único caso do tipo. A imagem logo acima mostra uma mulher operária na fábrica de peças de aviões Consolidated Aircraft Corporation, em Fort Worth, no Texas, EUA, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Quando os homens não estão disponíveis, deixam para suas companheiras fazerem o seu trabalho. Quando voltam, tudo volta a ser como era.
Até quando tudo voltará a ser como era depois de cada 8 de março?
segunda-feira, 7 de março de 2011
Compreender Hannah Arendt
"Compreender: formação, exílio e totalitarismo" (ensaios)
Hannah Arendt
Cia. das Letras e Editora da UFMG
2008
Hannah Arendt
Cia. das Letras e Editora da UFMG
2008
É possivel, para um intelectual, fazer filosofia política para compreender seu próprio inferno? Este livro é uma coletânea de ensaios da filósofa e cientista política alemã Hannah Arendt (1906-1975) que cobre de 1930 a 1954. Começa quando ainda residia no seu país, atravessa o período do terror nazista - era judia - e termina quando ela já estava exilada nos Estados Unidos.
Na verdade, Hannah não gostava que a chamassem de filósofa. Numa entrevista a Günter Gaus, reproduzida no início do volume, disse que trocou essa áera pela ciência política exatamente no dia 27 de fevereiro de 1933, quando o governo de Hitler, recém-instaurado na Alemanha, provocou um incêndio no próprio Parlamento do país para justificar perseguições políticas generalizadas - era o início do terror nazista no país. "Eu me senti responsável. Isto e, não achava mais que se pudesse ser um simples espectador", contou a Gaus.
A partir de então, passou a tentar compreender como pôde acontecer o horror totalitário na Europa - Alemanha, União Soviética e outros países - e a analisar o fenômeno do sionismo. Os ensaios refletem bem essa ruptura. Após alguns estritamente filosóficos no início, logo passa a contemplar majoritariamente temas políticos, muitas vezes envolvendo os totalitarismos.
Hannah não achava que o terror estatal no seu país e na Rússia era uma variante de regimes autoritários que existiam havia séculos, mas sim algo novo e terrível, uma especificidade típica do século XX. Ao falar desses assuntos, estava na verdade se metendo em terreno com reflexos pessoais. Judia, foi perseguida pelo regime e fugiu para a França; pouco depois, a Alemanha invadiu o país e ela foi presa num campo de concentração francês; conseguiu fugir, caminhou algumas centenas de quilômetros a pé até conseguir condução, atravessou a fronteira com a Espanha e zarpou para os Estados Unidos num navio.
A obra de Hannah é, assim, permeada pela sua dimensão pessoal num nível incomum em intelectuais. Outro tema em que não pôde deixar de se envolver foi o feminismo, a condição de ser mulher no meio intelectual de sua época. Mas um elemento importante de sua vida que quase não aparece neste livro - talvez por ser excessivamente pessoal - é sua relação com Martin Heidegger, um caso de amor extraordinário e cinematográfico que sobreviveu mesmo às acusações de compactuação com o regime nazista imputadas ao autor de "O ser e o tempo". O surpreendente retorno de Hannah aos braços do ex-amante, após anos de rompimento por causa do papel de Heidegger dentro da máquina do regime, e superando todos os horrores por que passou, constituem as páginas mais sublimes da biografia escrita por Laure Adler ("Nos passos de Hannah Arendt", editora Record). No entanto, em "Compreender", Hannah dedica a ele apenas um ensaio de exatamente uma página - mas um texto surpreendente, escrito de forma cifrada mas muito belo.
Há no volume também várias resenhas - incluindo, como não poderia deixar de ser, interessantes comentários sobre a obra de Franz Kafka, o profeta do apocalipse totalitário que se abateu sobre a Europa no século XX e talvez de vários aspectos mais sutis da sociedade moderna. O leitor encontrará no livro também alguns ensaios muito atrativos do ponto de vista historiográfico, pois captam percepções sobre certos momentos históricos no calor da hora - como a sua análise sobre o "problema alemão" em pleno 1945, ano do fim da Segunda Guerra.
Há um outro lado muito importante do pensamento político de Hannah pouco abordado nesses encritos, referente ao problema do sionismo. No entanto, a Introdução de Jerome Kohn promete um segundo volume que reúna esses trabalhos. Esperemos.
domingo, 6 de março de 2011
Desabafo de um passageiro de ônibus urbano
Porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata
Mas com gente é diferente...
(Geraldo Vandré, "Disparada")
Tange, ferra, engorda e mata
Mas com gente é diferente...
(Geraldo Vandré, "Disparada")
O que você faz quando um ônibus que você espera simplesmente passa do outro lado da pista, com poucos passageiros, e não pára no ponto? E quando, uns 15 minutos depois, outro ônibus da mesma linha faz a mesma coisa?
Se for em Campinas, ligar para a EMDEC, claro. Só que aí a pessoa do seu lado, no ponto, comenta que sempre faz isso e nunca viu mudança nenhuma...
Bem, foi o que me aconteceu ontem nesta cidade. "Sorte" que eu não tinha nenhum compromisso sério e nem estava em conexão - aqui tem um cartão com o qual você pode pegar mais de um ônibus no intervalo de uma hora; eu teria ultrapassado o limite e teria que pagar R$ 2,85 de novo.
Nesta cidade, Campinas, motoristas de ônibus decidem quando páram ou não nos pontos! O caso é particularmente frequente na linha 3.85, que vai ao shopping Iguatemi. Onde estão os fiscais??
Nesta cidade, Campinas, motoristas de ônibus, ao invés de parar completamente em sinais fechados, ficam dando "soquinhos", freiadinhas seguidas, enquanto as pessoas de pé são sacudidas e têm que se agarrar nos ferros e bancos para não serem lançadas para a frente de dois em dois segundos.
Se alguém faz isso num carro de passeio com alguém do lado, esse alguém em geral olha torto, reclama e diz que aquilo é não saber dirigir! Custa ter um pouco de respeito? Ou melhor, um mínimo?
Esta cidade, Campinas, é o único lugar que conheço onde você tem que se segurar no banco dos ônibus, sentado, para não escorregar pela tangente nas curvas! Porque aqui os ônibus aceleram nas curvas! Nunca vi isso em Belo Horizonte, São Paulo, Curitiba ou qualquer outro lugar onde tenha pego transporte coletivo.
Já vi várias pessoas se machucarem com freadas e aceleradas bruscas, feitas sem motivo aparente. Eu mesmo já arranjei um roxo enorme e dolorido na canela, após uma acelerada afobada.
Nesta cidade, Campinas, ninguém avisa quando uma linha muda de itinerário - e eles mudam frequentemente. Quando acontece, os passageiros ficam parados no ponto feito patetas, perdendo compromissos, tempo e paciência, enquanto o comboio faz outro itinerário. Já aconteceu várias vezes comigo e com gente que conheço.
Ah, sim, claro, dá para tomar informações ligando para a central ou vendo cartazes em alguns terminais. Tenho que ligar para a central todas as vezes que for pegar ônibus, agora??
Nesta cidade, Campinas, as rodas traseiras dos ônibus estão perto da metade do veículo e o asfalto é de uma qualidade horrenda, de modo que os bancos de trás sacodem feito cavalo de rodeio. Aprendi a ficar na ponta dos pés para amortecer e não sentir as ondas de choque através das minhas vísceras. Não admira que haja poças de vômitos ali com tanta frequência.
E, claro, em Campinas, como em quase todos os lugares do país, as pessoas ficam assardinhadas dentro dos ônibus, tendo que esfregar-se, homens em mulheres, mulheres em homens, para conseguir chegar na porta de saída a tempo de descer. Enfrentando suor alheio e falta de ar respirável quando chove e fecham as janelas. Afinal, por que o poder público gastaria mais dinheiro colocando mais veículos se os que já existem já fazem o serviço, isto é, transportar sua carga de um ponto a outro?
Acontece que essa "carga" é de seres humanos! NÃO SOMOS GADO!!!!!
P.S. - A ilustração no início do texto é assinada pelo cartunista português Álvaro.
quinta-feira, 3 de março de 2011
A "morte" do texto
Nunca dei grande trela para essas previsões teóricas imediatistas do "fim" do e-mail, massacrado pelas redes sociais - afinal, ainda recebo muitos e-mails o por dia sem parar. Mas eis que hoje, depois de ler um post da Kika Castro sobre isso, resolvi dar uma olhada no que realmente recebo (estou aqui "roubando" o assunto dela...!). E vi que a maior parte dos e-mails que me chegam são avisos de mensagens e congêneres do Facebook, Linkedin, blogs e outras redes sociais ou de matérias em sites.
Olha a dimensão da coisa: neste instante, há 39 "chamadas" de mensagens na primeira página do meu Gmail, sendo que apenas 8 são trocadas por e-mail entre eu e outra pessoa física identificável (detalhe: as oito são com a mesma pessoa). O resto são avisos de redes sociais, boletins informativos de notícias sobre ciência e coisas do tipo. Houve um tempo em que eu frequentava mais de 30 listas de e-mails. Agora continuo nelas, mas quase as abandonei.
As redes sociais têm sua utilidade, isso é inegável - vide meu post sobre para que serve o Twitter, ou então lembremo-nos de quantas pessoas que não víamos há 20 anos redescobrimos pelo Orkut. E o Facebook tem a vantagem de permitir compartilhar em massa os "telegramas".
O grande problema é resumirmo-nos às suas restritas possibilidades de comunicação. "Restritas" porque o que chama a atenção nessas ferramentas pirotécnicas é o apelo visual e a quantidade de ícones coloridos disputando atenção em comparação com o minúsculo espaço para textos.
Isso parece ser sintoma de algo maior - o ponto é exatamente que as pessoas estão cada vez menos dispostas a encarar textos. E isso está sendo "legitimado" pelo formato imposto de interação usuário-Internet. Sim, "imposto", pois os sistemas não só valorizam os textos mais curtos, mas também - homessa! - simplesmente proibem o usuário de escrever além de certa conta! Primeiro foi o Orkut, com uns 1200 caracteres no máximo ou algo assim; depois o Facebook com 420; depois o Twitter com seus 140... tenho medo de imaginar o que virá em seguida!
A crise do e-mail também parece ter a ver com outra coisa mais ampla: uma queda nos próprios relacionamentos pessoais entre as pessoas. Uma aceleração do que talvez venha acontecendo pelo menos desde o advento da televisão e, depois do vídeo-game. Uma comentarista do texto da Kika mencionou aquelas criaturas que aparecem em reuniões de amigos e logo mergulham a cara num smartphone ou o que seja e ignoram todo o diálogo, toda a relação social à sua volta para ficar trocando mensagens fáticas e inócuas com seus botõezinhos coloridos.
O retorno fugaz da correspondência pessoal
Será isso o prosseguimento de um processo que começou com a morte da correspondência à mão? Pois, nos séculos XVIII e XIX, trocava-se toneladas de cartas quase todos os dias. Pelo menos, na elite que sabia escrever. Escritas com caligrafia, transmitindo aquele toque pessoal e íntimo (convido os leitores que não passaram por essa experiência a trocar umas correspondências de papel para verem a diferença que faz terem diante de si a caligrafia das pessoas). Havia até romances epistolares, histórias escritas inteiramente por meio de cartas fictícias, como "Relações periogosas" de Choderlos de Laclos. Mas, nas últimas décadas do século XX, a carta à mão praticamente despareceu.
No entanto, eis que aí vieram os e-mails. As pessoas voltaram a trocar megabytes de correspondências com gente do outro lado do mundo. Mas durou pouco... A moçada ainda se contacta freneticamente pela Internet, mas para interaçõezinhas telegráficas em geral anódinas.
Enquanto isso, reformas editoriais em jornais e revistas têm sido justificadas como se a diminuição do texto em prol do visual fosse uma grande virtude. As últimas foram a da Folha em maio do ano passado e a do Estadão logo em seguida, mas lembro-me de uma da Veja há quase dez anos. Em uma palestra de um de seus editores em uma aula no Laboratório de Jornalismo (Labjor) da Unicamp, ele explicou que a reforma aumentava a quantidade de imagens e diminuía a de textos - e se ufanava disso, enquanto nós estudantes ouvíamos boquiabertos.
Bem, de qualquer forma, eu não acho que o e-mail ou os blogs acabarão, pela simples razão que as pessoas que gostam de escrever mais que uma ou duas frases por mensagem não vão desaparecer. Apenas, essas ferramentas vão se acomodar à nova realidade. Mesmo assim, impressiona-me o buraco fundo em que está se metendo nossa sociedade.
O preço será cobrado
É, mas a lagoa há de secar. Por mais que nosso sistema se baseie na inovação e na tecnologia, ele ainda depende fundamentalmente da relação entre as pessoas e da sua capacidade de conceber estratégias e analisar a realidade à sua volta. E a fuga do texto é reflexo de numa fuga do esforço de análise e um abraço na passividade. Do jeito que as coisas estão caminhando, mais cedo ou mais tarde teremos uma gorda crise sistêmica por pura falta de cultura.
Sim... cultura! Tem gente que acha que cultura é apenas entretenimento. Um belo dia, terão uma surpresa e tanto!
Como evitar? Passa necessariamente pela escola. Sistemas inclusivos; pedagogias atualizadas que preparem para um usufruto equilibrado da Internet e que não "ensinem" os alunos a odiar a escrever, a ler e a pensar, como frequentemente acontece; professores bem preparados e bem pagos. E políticas públicas de fomento à cultura. Como sempre.
Olha a dimensão da coisa: neste instante, há 39 "chamadas" de mensagens na primeira página do meu Gmail, sendo que apenas 8 são trocadas por e-mail entre eu e outra pessoa física identificável (detalhe: as oito são com a mesma pessoa). O resto são avisos de redes sociais, boletins informativos de notícias sobre ciência e coisas do tipo. Houve um tempo em que eu frequentava mais de 30 listas de e-mails. Agora continuo nelas, mas quase as abandonei.
As redes sociais têm sua utilidade, isso é inegável - vide meu post sobre para que serve o Twitter, ou então lembremo-nos de quantas pessoas que não víamos há 20 anos redescobrimos pelo Orkut. E o Facebook tem a vantagem de permitir compartilhar em massa os "telegramas".
O grande problema é resumirmo-nos às suas restritas possibilidades de comunicação. "Restritas" porque o que chama a atenção nessas ferramentas pirotécnicas é o apelo visual e a quantidade de ícones coloridos disputando atenção em comparação com o minúsculo espaço para textos.
Isso parece ser sintoma de algo maior - o ponto é exatamente que as pessoas estão cada vez menos dispostas a encarar textos. E isso está sendo "legitimado" pelo formato imposto de interação usuário-Internet. Sim, "imposto", pois os sistemas não só valorizam os textos mais curtos, mas também - homessa! - simplesmente proibem o usuário de escrever além de certa conta! Primeiro foi o Orkut, com uns 1200 caracteres no máximo ou algo assim; depois o Facebook com 420; depois o Twitter com seus 140... tenho medo de imaginar o que virá em seguida!
A crise do e-mail também parece ter a ver com outra coisa mais ampla: uma queda nos próprios relacionamentos pessoais entre as pessoas. Uma aceleração do que talvez venha acontecendo pelo menos desde o advento da televisão e, depois do vídeo-game. Uma comentarista do texto da Kika mencionou aquelas criaturas que aparecem em reuniões de amigos e logo mergulham a cara num smartphone ou o que seja e ignoram todo o diálogo, toda a relação social à sua volta para ficar trocando mensagens fáticas e inócuas com seus botõezinhos coloridos.
O retorno fugaz da correspondência pessoal
Será isso o prosseguimento de um processo que começou com a morte da correspondência à mão? Pois, nos séculos XVIII e XIX, trocava-se toneladas de cartas quase todos os dias. Pelo menos, na elite que sabia escrever. Escritas com caligrafia, transmitindo aquele toque pessoal e íntimo (convido os leitores que não passaram por essa experiência a trocar umas correspondências de papel para verem a diferença que faz terem diante de si a caligrafia das pessoas). Havia até romances epistolares, histórias escritas inteiramente por meio de cartas fictícias, como "Relações periogosas" de Choderlos de Laclos. Mas, nas últimas décadas do século XX, a carta à mão praticamente despareceu.
No entanto, eis que aí vieram os e-mails. As pessoas voltaram a trocar megabytes de correspondências com gente do outro lado do mundo. Mas durou pouco... A moçada ainda se contacta freneticamente pela Internet, mas para interaçõezinhas telegráficas em geral anódinas.
Enquanto isso, reformas editoriais em jornais e revistas têm sido justificadas como se a diminuição do texto em prol do visual fosse uma grande virtude. As últimas foram a da Folha em maio do ano passado e a do Estadão logo em seguida, mas lembro-me de uma da Veja há quase dez anos. Em uma palestra de um de seus editores em uma aula no Laboratório de Jornalismo (Labjor) da Unicamp, ele explicou que a reforma aumentava a quantidade de imagens e diminuía a de textos - e se ufanava disso, enquanto nós estudantes ouvíamos boquiabertos.
Bem, de qualquer forma, eu não acho que o e-mail ou os blogs acabarão, pela simples razão que as pessoas que gostam de escrever mais que uma ou duas frases por mensagem não vão desaparecer. Apenas, essas ferramentas vão se acomodar à nova realidade. Mesmo assim, impressiona-me o buraco fundo em que está se metendo nossa sociedade.
O preço será cobrado
É, mas a lagoa há de secar. Por mais que nosso sistema se baseie na inovação e na tecnologia, ele ainda depende fundamentalmente da relação entre as pessoas e da sua capacidade de conceber estratégias e analisar a realidade à sua volta. E a fuga do texto é reflexo de numa fuga do esforço de análise e um abraço na passividade. Do jeito que as coisas estão caminhando, mais cedo ou mais tarde teremos uma gorda crise sistêmica por pura falta de cultura.
Sim... cultura! Tem gente que acha que cultura é apenas entretenimento. Um belo dia, terão uma surpresa e tanto!
Como evitar? Passa necessariamente pela escola. Sistemas inclusivos; pedagogias atualizadas que preparem para um usufruto equilibrado da Internet e que não "ensinem" os alunos a odiar a escrever, a ler e a pensar, como frequentemente acontece; professores bem preparados e bem pagos. E políticas públicas de fomento à cultura. Como sempre.
O ritual: para onde foi Anthony Hopkins?
Olha, já vou avisando que o filme "O ritual" me decepcionou um tanto. É verdade que não havia nada que indicasse um grande filme, mas fui pela presença de Sir Anthony Hopkins, um desses atores com capacidade de transformar uma película qualquer numa experiência memorável. No entanto, Hopkins não estava lá. Estava em corpo, mas não em espírito.
Quis imaginar depois que não havia muito espaço em seu papel para grandes arroubos de interpretação. Havia. Passagens súbitas de uma personalidade aparentemente equilibrada para a violência verbal e vice-versa, ou situações de tensão que devem ser transmitidas com linguagens não-verbais, são campos férteis para boas atuações. Não sei o que aconteceu. Talvez estivesse no lugar errado - um papel que exigia pantomimas emocionais e acessos repentinos de fúria. O talento de Hopkins é mais sutil.
O resultado foi que em alguns momentos aconteceu o inacreditável de o mestre correr um risco real de ser equiparado por um estreante no cinema, Colin O'Donoghue, que fez o personagem principal e que até então só tinha trabalhado para TV. Donoghue produziu pelo menos uma cena notável, um longo e expressivo olhar absolutamente fixo sobre duas pessoas que se sustentaria mesmo sem trilha sonora.
Sem Hopkins, o filme afundou na sua superficialidade e nos seus clichês. Em certo momento, revirei-me na cadeira e senti vontade de ver as horas. O pior é que há características demais em comum com "O exorcista", de 1973. Este último é uma obra-prima inesquecível extraordinariamente assustadora, da qual ninguém sai inteiro. Quem não a viu talvez possa apreciar melhor os recursos de "O ritual". Para quem viu, a estratégia do diretor Mikael Håfström foi suicida. Pareceu uma tentativa patética de copiar elementos de um filme de grande sucesso para ver se consegue algum. Não causa boa impressão.
Não tenho muito a falar sobre essa película, desculpem-me. Escrevi aqui porque o assisti e queria contar o que vi. Fica para a próxima.
Quis imaginar depois que não havia muito espaço em seu papel para grandes arroubos de interpretação. Havia. Passagens súbitas de uma personalidade aparentemente equilibrada para a violência verbal e vice-versa, ou situações de tensão que devem ser transmitidas com linguagens não-verbais, são campos férteis para boas atuações. Não sei o que aconteceu. Talvez estivesse no lugar errado - um papel que exigia pantomimas emocionais e acessos repentinos de fúria. O talento de Hopkins é mais sutil.
O resultado foi que em alguns momentos aconteceu o inacreditável de o mestre correr um risco real de ser equiparado por um estreante no cinema, Colin O'Donoghue, que fez o personagem principal e que até então só tinha trabalhado para TV. Donoghue produziu pelo menos uma cena notável, um longo e expressivo olhar absolutamente fixo sobre duas pessoas que se sustentaria mesmo sem trilha sonora.
Sem Hopkins, o filme afundou na sua superficialidade e nos seus clichês. Em certo momento, revirei-me na cadeira e senti vontade de ver as horas. O pior é que há características demais em comum com "O exorcista", de 1973. Este último é uma obra-prima inesquecível extraordinariamente assustadora, da qual ninguém sai inteiro. Quem não a viu talvez possa apreciar melhor os recursos de "O ritual". Para quem viu, a estratégia do diretor Mikael Håfström foi suicida. Pareceu uma tentativa patética de copiar elementos de um filme de grande sucesso para ver se consegue algum. Não causa boa impressão.
Não tenho muito a falar sobre essa película, desculpem-me. Escrevi aqui porque o assisti e queria contar o que vi. Fica para a próxima.
quarta-feira, 2 de março de 2011
Ciberguerra: uma realidade
Parece coisa de ficção científica: um país em guerra com outro lança um vírus nos sistemas computacionais da nação inimiga e seus sistemas elétricos são desligados, aviões caem, represas são abertas. Isso também poderia ser feito por um terrorista para grandes chantagens ou simplesmente para pôr fogo no circo.
Não é ficção. Aconteceu com o Irã em meados de 2009. As controvertidas ultracentrífugas que enriquecem urânio nas suas instalações nucleares se descontrolaram subitamente, inutilizando o material e atrasando seu programa nuclear. O motivo: um vírus extremamente específico, que só atacaria determinado tipo de programa de computador, justamente os que o Irã usava para seu equipamento. Segundo uma reportagem do New York Times, parece ter sido lançado por Israel com ajuda dos Estados Unidos. Se não fosse tão específico, o vírus atacaria computadores do planeta inteiro. Mas era inócuo para todo mundo, exceto para as instalações iranianas.
A guerra cibernética entrou definitivamente em cena e agora as estratégias dos países terão que se adequar a essa nova contingência. Foi sobre isso que falou Richard Clarke numa entrevista ao jornalista Jorge Pontual, no programa Milênio, da Globonews, anteontem à noite. Já comentei em outro post sobre outro assunto interessante abordado naquele momento, o quanto funcionários da CIA sabiam sobre a presença de agentes da Al Qaeda nos EUA nos meses que precederam os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.
Depois de sair do governo estadunidense por discordar da política externa do presidente Bush - ele era o responsável pelo setor de comabate ao terrorismo -, Clarke dedicou-se ao estudo da ciberguerra e escreveu o que pensa da ciberguerra em seu último livro, “Cyber War: The Next Threat to National Security and What to Do About It” (na tradução livre de Pontual: “Guerra Cibernética: a próxima ameaça à segurança nacional e o que fazer a respeito disso”).
Segundo Clarke, mesmo países que não estão em qualquer tipo de beligerância estão já sorrateiramente invadindo os sistemas de outras nações para instalar lá "backdoors" para serem usados em caso de necessidade. Países como China e Estados Unidos. Isso porque, no caso de uma ciberguerra, é preciso estar com tudo já pronto para poder começá-la - se forem deixar para invadir os sistemas "do zero" na hora H, não conseguirão.
Às vezes alguma atividade desse tipo torna-se visível. Em novembro do ano passado, a China, por meio de uma manipulação de roteadores, desviou o fluxo da Internet dos Estados Unidos para lá para depois retornar aos EUA. Se alguém de Nova Iorque mandasse um e-mail para seu vizinho, ele ia parar na China e depois voltaria ao seu destino final - e ninguém perceberia. Pouco depois, a situação voltou ao normal. Segundo Clarke, teoricamente, os chineses poderiam com isso bloquear a Internet nos EUA. Como não fizeram nada, não fez diferença para ninguém, a não ser para alguns técnicos de empresas como a McAfee, especializada em vírus e malwares de toda espécie, que detectaram o fenômeno e chamaram a atenção para o acontecido. Para Clarke, pode ter sido apenas um experimento chinês ou então uma advertência do tipo "vejam o que nós podemos fazer". Algo análogo a uma demonstração de força militar.
Ciberapagões
Para evitar que, por exemplo, usinas hidrelétricas sejam desligadas e um país inteiro caia num apagão por um ciberataque, seria preciso que essas usinas se isolassem da Internet, usando apenas sistemas internos. De acordo com Clarke, várias empresas de eletricidade nos EUA dizem que seus sistemas são isolados, mas, na prática, não são.
Segundo o ex-funcionário do governo dos EUA, a situação é agravada pelo fato de, por razões ideológicas e econômicas, o governo central se recusa a obrigar as empresas privadas a instalarem protetores contra esse tipo de ataque. E os sistemas elétricos, telefônicos nos Estados Unidos são privados.
A conclusão de Clarke foi fulminante: por causa disso, os EUA estão completamente vulneráveis a ciberataques contra seus sistemas de comunicação e de transporte. Paradoxalmente, o fato de eles serem o país tecnologicamente mais avançado do mundo também os torna os mais suscetíveis a ataques virtuais.
Indo além do que Clarke falou - os parágrafos a seguir não foram comentados na entrevista -, mesmo que as empresas tentassem isolar seus sistemas, a evolução da tecnologia atual vai na contramão desse tipo de estratégia. Já estão sendo instalados em vários países os sistemas elétricos inteligentes, que usam intensivamente tecnologias de informação para o seu gerenciamento. Prevê-se que até mesmo uma geladeira de uma habitação comum poderá ser controlada à distância. Isso implica na integração entre os sistemas elétricos - geração, produção e distribuição - à Internet.
Será muito difícil deter o processo, pois há uma verdadeira "corrida" entre países e entre empresas para implementar esses novos sistemas - pois, com o melhor gerenciamento pela administração maciça de enorme quantidade de dados, a competitividade aumenta muito. No Brasil, governo e empresas já vêm se mobilizando para implementar um sistema elétrico inteligente. A Companhia Paranaense de Energia (Copel) já investiu, só em 2010, R$ 20 milhões para a adaptação do setor, e pretende investir mais R$ 300 milhões até 2014 (segundo um artigo de Cyro Vicente Boccuzzi, em PDF). Para proteger o sistema, seria necessário adaptar a nova tecnologia às ameaças, e não simplesmente deter seu avanço.
No entanto, o conceito embute também a geração descentralizada, não só pelas habitações, como com pequeninas usinas de produção local, o que dificulta o lançamento de vírus específicos para um só país. Mesmo assim, tem produzido, na sociedade, preocupações relacionadas a segurança e privacidade. Esses problemas serão especialmente importantes se, como lembrou Kirt Rasmussen em uma palestra (PDF) de 2009, houver um descompasso entre a velocidade de implementação dos smart grids e de adaptação dos marcos regulatórios - algo esperado, mas não inevitável.
Mais sobre redes elétricas inteligentes: The smart grid: an introduction (PDF)
Não é ficção. Aconteceu com o Irã em meados de 2009. As controvertidas ultracentrífugas que enriquecem urânio nas suas instalações nucleares se descontrolaram subitamente, inutilizando o material e atrasando seu programa nuclear. O motivo: um vírus extremamente específico, que só atacaria determinado tipo de programa de computador, justamente os que o Irã usava para seu equipamento. Segundo uma reportagem do New York Times, parece ter sido lançado por Israel com ajuda dos Estados Unidos. Se não fosse tão específico, o vírus atacaria computadores do planeta inteiro. Mas era inócuo para todo mundo, exceto para as instalações iranianas.
A guerra cibernética entrou definitivamente em cena e agora as estratégias dos países terão que se adequar a essa nova contingência. Foi sobre isso que falou Richard Clarke numa entrevista ao jornalista Jorge Pontual, no programa Milênio, da Globonews, anteontem à noite. Já comentei em outro post sobre outro assunto interessante abordado naquele momento, o quanto funcionários da CIA sabiam sobre a presença de agentes da Al Qaeda nos EUA nos meses que precederam os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001.
Depois de sair do governo estadunidense por discordar da política externa do presidente Bush - ele era o responsável pelo setor de comabate ao terrorismo -, Clarke dedicou-se ao estudo da ciberguerra e escreveu o que pensa da ciberguerra em seu último livro, “Cyber War: The Next Threat to National Security and What to Do About It” (na tradução livre de Pontual: “Guerra Cibernética: a próxima ameaça à segurança nacional e o que fazer a respeito disso”).
Segundo Clarke, mesmo países que não estão em qualquer tipo de beligerância estão já sorrateiramente invadindo os sistemas de outras nações para instalar lá "backdoors" para serem usados em caso de necessidade. Países como China e Estados Unidos. Isso porque, no caso de uma ciberguerra, é preciso estar com tudo já pronto para poder começá-la - se forem deixar para invadir os sistemas "do zero" na hora H, não conseguirão.
Às vezes alguma atividade desse tipo torna-se visível. Em novembro do ano passado, a China, por meio de uma manipulação de roteadores, desviou o fluxo da Internet dos Estados Unidos para lá para depois retornar aos EUA. Se alguém de Nova Iorque mandasse um e-mail para seu vizinho, ele ia parar na China e depois voltaria ao seu destino final - e ninguém perceberia. Pouco depois, a situação voltou ao normal. Segundo Clarke, teoricamente, os chineses poderiam com isso bloquear a Internet nos EUA. Como não fizeram nada, não fez diferença para ninguém, a não ser para alguns técnicos de empresas como a McAfee, especializada em vírus e malwares de toda espécie, que detectaram o fenômeno e chamaram a atenção para o acontecido. Para Clarke, pode ter sido apenas um experimento chinês ou então uma advertência do tipo "vejam o que nós podemos fazer". Algo análogo a uma demonstração de força militar.
Ciberapagões
Para evitar que, por exemplo, usinas hidrelétricas sejam desligadas e um país inteiro caia num apagão por um ciberataque, seria preciso que essas usinas se isolassem da Internet, usando apenas sistemas internos. De acordo com Clarke, várias empresas de eletricidade nos EUA dizem que seus sistemas são isolados, mas, na prática, não são.
Segundo o ex-funcionário do governo dos EUA, a situação é agravada pelo fato de, por razões ideológicas e econômicas, o governo central se recusa a obrigar as empresas privadas a instalarem protetores contra esse tipo de ataque. E os sistemas elétricos, telefônicos nos Estados Unidos são privados.
A conclusão de Clarke foi fulminante: por causa disso, os EUA estão completamente vulneráveis a ciberataques contra seus sistemas de comunicação e de transporte. Paradoxalmente, o fato de eles serem o país tecnologicamente mais avançado do mundo também os torna os mais suscetíveis a ataques virtuais.
Indo além do que Clarke falou - os parágrafos a seguir não foram comentados na entrevista -, mesmo que as empresas tentassem isolar seus sistemas, a evolução da tecnologia atual vai na contramão desse tipo de estratégia. Já estão sendo instalados em vários países os sistemas elétricos inteligentes, que usam intensivamente tecnologias de informação para o seu gerenciamento. Prevê-se que até mesmo uma geladeira de uma habitação comum poderá ser controlada à distância. Isso implica na integração entre os sistemas elétricos - geração, produção e distribuição - à Internet.
Será muito difícil deter o processo, pois há uma verdadeira "corrida" entre países e entre empresas para implementar esses novos sistemas - pois, com o melhor gerenciamento pela administração maciça de enorme quantidade de dados, a competitividade aumenta muito. No Brasil, governo e empresas já vêm se mobilizando para implementar um sistema elétrico inteligente. A Companhia Paranaense de Energia (Copel) já investiu, só em 2010, R$ 20 milhões para a adaptação do setor, e pretende investir mais R$ 300 milhões até 2014 (segundo um artigo de Cyro Vicente Boccuzzi, em PDF). Para proteger o sistema, seria necessário adaptar a nova tecnologia às ameaças, e não simplesmente deter seu avanço.
No entanto, o conceito embute também a geração descentralizada, não só pelas habitações, como com pequeninas usinas de produção local, o que dificulta o lançamento de vírus específicos para um só país. Mesmo assim, tem produzido, na sociedade, preocupações relacionadas a segurança e privacidade. Esses problemas serão especialmente importantes se, como lembrou Kirt Rasmussen em uma palestra (PDF) de 2009, houver um descompasso entre a velocidade de implementação dos smart grids e de adaptação dos marcos regulatórios - algo esperado, mas não inevitável.
Mais sobre redes elétricas inteligentes: The smart grid: an introduction (PDF)
terça-feira, 1 de março de 2011
Crônica de um 11 de setembro anunciado
A CIA sabia da presença de dois membros da Al Qaeda em solo dos Estados Unidos desde 9 meses antes dos ataques de 11 de setembro de 2001 - porém, só avisou o governo poucas semanas antes dos atentados. Ninguém sabe por que ocultram a informação, a não ser os cerca de 60 funcionários da CIA que a compartilhavam.
Quem disse isso foi Richard Clarke - que, na época, era o responsável pelo combate ao terrorismo no governo Bush - numa entrevista para o jornalista Jorge Pontual, no programa Milênio, da Globo News, ontem à noite. Clarke contou que, na época dos atentados, conversava praticamente todo dia com o chefe da CIA e este não lhe passou aquele fragmento de informação.
O entrevistador chegou a perguntar-lhe se aquilo não era um indício de que o governo dos EUA deliberadamente deixou as coisas acontecerem. Clarke respondeu que não acreditava nisso; sua hipótese era que a CIA queria ver se transformava os dois membros da Al Qaeda em agentes duplos. Porém, quando a informação chegou ao presidente Bush filho, ele a ignorou. Segundo Clarke, nas semanas antes dos atentados, os funcionários do governo sabiam que algo iria acontecer, só não sabiam quando, onde ou exatamente o quê.
O tema central do programa foi a guerra cibernética, assunto do último livro de Clarke (“Cyber War: The Next Threat to National Security and What to Do About It” - em tradução livre de Pontual: “Guerra Cibernética: a próxima ameaça à segurança nacional e o que fazer a respeito disso”). [P.S. - E que comentei em outro post] Mas suas declarações sobre o 11 de setembro mereceram comentários à parte inclusive no blog do programa Milênio. Ali, Jorge Pontual lembra outros trechos da entrevista. Clarke foi o único funcionário que pediu desculpas às famílias das vítimas do atentado. Disse que ficou surpreso pelo fato de, depois que fez a sua retratação, ninguém o imitou. Nem mesmo na autobiografia de George W. Bush, abarrotada de informações, existe qualquer confissão de que tenha errado em algum momento.
Clarke deixou o governo em 2003 por conflitos com o presidente sobre o modo como ele geria a sua "guerra ao terrorismo", incluindo na invasão do Iraque naquele ano. Depôs à comissão que investigou os atentados de 11/09 e em seguida foi perseguido por Bush, que tentou difamá-lo.
Lembrando que o grande "motivo" alardeado por Bush e pelo governo do Reino Unido para a invasão do Iraque em 2003 foi a "existência" de armas de destruição em massa - químicas, biológicas - em seu território. As armas não foram encontradas. Até hoje o governo dos EUA tenta desculpar-se alegando depoimentos falsos - que existiram; recentemente, o The Guardian publicou uma matéria em que o "principal" informante de Washington sobre as armas iraquianas, Rafid Ahmed Alwan al-Janabi ou "Curveball", confessou ter mentido.
Outra "razão" para a invasão foi o envolvimento do ditador iraquiano Saddam Hussein com os atentados de 11 de setembro. O que é um disparate, afirmou Clarke, que lembrou também que morreram mais estadunidenses nessa guerra que nos atentados (2996 nestes últimos e mais de 4 mil na guerra até hoje, sem falar nos cerca de 100 mil iraquianos mortos, a maioria inocentes - vide, p. ex., a página da ONG Iraqi Body Count).
Por que o Iraque foi invadido?
Até hoje se discute por que Bush teria atacado o Iraque em 2003. Minha impressão é que houve uma conjuminação de motivações. Seriam elas:
Quem disse isso foi Richard Clarke - que, na época, era o responsável pelo combate ao terrorismo no governo Bush - numa entrevista para o jornalista Jorge Pontual, no programa Milênio, da Globo News, ontem à noite. Clarke contou que, na época dos atentados, conversava praticamente todo dia com o chefe da CIA e este não lhe passou aquele fragmento de informação.
O entrevistador chegou a perguntar-lhe se aquilo não era um indício de que o governo dos EUA deliberadamente deixou as coisas acontecerem. Clarke respondeu que não acreditava nisso; sua hipótese era que a CIA queria ver se transformava os dois membros da Al Qaeda em agentes duplos. Porém, quando a informação chegou ao presidente Bush filho, ele a ignorou. Segundo Clarke, nas semanas antes dos atentados, os funcionários do governo sabiam que algo iria acontecer, só não sabiam quando, onde ou exatamente o quê.
O tema central do programa foi a guerra cibernética, assunto do último livro de Clarke (“Cyber War: The Next Threat to National Security and What to Do About It” - em tradução livre de Pontual: “Guerra Cibernética: a próxima ameaça à segurança nacional e o que fazer a respeito disso”). [P.S. - E que comentei em outro post] Mas suas declarações sobre o 11 de setembro mereceram comentários à parte inclusive no blog do programa Milênio. Ali, Jorge Pontual lembra outros trechos da entrevista. Clarke foi o único funcionário que pediu desculpas às famílias das vítimas do atentado. Disse que ficou surpreso pelo fato de, depois que fez a sua retratação, ninguém o imitou. Nem mesmo na autobiografia de George W. Bush, abarrotada de informações, existe qualquer confissão de que tenha errado em algum momento.
Clarke deixou o governo em 2003 por conflitos com o presidente sobre o modo como ele geria a sua "guerra ao terrorismo", incluindo na invasão do Iraque naquele ano. Depôs à comissão que investigou os atentados de 11/09 e em seguida foi perseguido por Bush, que tentou difamá-lo.
Lembrando que o grande "motivo" alardeado por Bush e pelo governo do Reino Unido para a invasão do Iraque em 2003 foi a "existência" de armas de destruição em massa - químicas, biológicas - em seu território. As armas não foram encontradas. Até hoje o governo dos EUA tenta desculpar-se alegando depoimentos falsos - que existiram; recentemente, o The Guardian publicou uma matéria em que o "principal" informante de Washington sobre as armas iraquianas, Rafid Ahmed Alwan al-Janabi ou "Curveball", confessou ter mentido.
Outra "razão" para a invasão foi o envolvimento do ditador iraquiano Saddam Hussein com os atentados de 11 de setembro. O que é um disparate, afirmou Clarke, que lembrou também que morreram mais estadunidenses nessa guerra que nos atentados (2996 nestes últimos e mais de 4 mil na guerra até hoje, sem falar nos cerca de 100 mil iraquianos mortos, a maioria inocentes - vide, p. ex., a página da ONG Iraqi Body Count).
Por que o Iraque foi invadido?
Até hoje se discute por que Bush teria atacado o Iraque em 2003. Minha impressão é que houve uma conjuminação de motivações. Seriam elas:
- Desviar a atenção pública da guerra mais diretamente ligada aos atentados de 11 de setembro, a do Afeganistão, que não só não resultou na prisão do principal acusado, Osama bin Laden, mas se aproximava de uma situação de atolamento.
- O Iraque era o dos três maiores produtores de petróleo do Oriente Médio, ao lado da Arábia Saudita e do Kuwait. É verdade, porém, que uma fração pequena do petróleo consumido pelos EUA vem do Oriente Médio (as maiores fontes são, atualmente, Canadá, México, Nigéria e Venezuela).
- O Iraque é o país que possui a maior concentração de água do Oriente Médio. Por ali passam os rios Tigre e Eufrates e entre eles há a fértil Mesopotâmia com seus terrenos pantanosos. E, naquela parte do mundo, água vale ouro. Quem controla o país controla os aquedutos que se espalham a partir dali para toda aquela região, ávida pelo preciso líquido.
- O Iraque possui fronteiras grandes com dois dos principais elementos do "eixo do mal" escolhidos por Bush: a Síria e o Irã (vide mapa no fim deste texto). Poderia servir, no futuro, como base para neutralizar ou mesmo atacar esses países.
- O Iraque proporcionaria uma ligação física direta entre a Europa, incluindo membros da OTAN como a Turquia, e o Golfo Pérsico (vide o mapa abaixo).
- Saddam Hussein era uma pedra no sapato de Bush. A guerra feita por seu pai em 1990, após a anexação do Kuwait pelo ditador, não o depôs; ao contrário, ele permaneceu no poder enquanto violava periodicamente a zona de exclusão aérea imposta pelos EUA e driblava os inspetores da ONU que buscavam armas de destruição em massa, o que levava a eventuais ataques e bombardeios estadunidenses. Ficou 13 anos assim.
- Alguns estudiosos, como Demétrio Magnoli, avaliam que, após os atentados de 11 de setembro, os EUA procuravam um "aliado incondicional" alternativo à Arábia Saudita, pois Osama bin Laden tinha ligações fortes com os wahhabitas, uma seita muçulmana radical muito presente naquele país e também estreitamente ligada ao governo do mesmo. A ideia era conquistar o Iraque e depois distanciar-se dos sauditas e seus wahhabitas malucos.
sábado, 26 de fevereiro de 2011
Wall-E
A Terra é desabitada há séculos. Entulhos espalham-se por todos os lados. No meio do caos, uma última maquininha construída pelos humanos, que sobreviveu a esse tempo todo, continua diligente no que foi programada para fazer. Vai para lá e para cá, trabalhando sem parar.
É um robozinho simples, já desgastado, movido a energia solar. A expressividade de sua aparência e seus movimentos testemunha a competência dos animadores do filme "Wall-E" (pronuncia-se "Uólii"). Mesmo considerando o que o fundador das empresas Disney conseguiu fazer com um camundongo, o resultado que a sua associada Pixar obteve para o robozinho velho e sujo é surpreendente. E lograram uma textura bastante agradável para um cenário desértico de lixo e destruição.
Na primeira parte do desenho, o espectador é um voyeur observando a divertida atividade diária da maquininha. Onde ela dorme (energia solar não está disponivel o dia todo...), como começa seus trabalhos, o que faz com o que vai encontrando pelo caminho.
Até que, claro, encontra algo diferente. Mas eis que nesse universo ficcional as máquinas têm caprichos, interesses próprios e curiosidade - e conseguem com dificuldade pronunciar seus próprios nomes. E a curiosidade de Wall-E o faz distanciar-se completamente de sua diretriz primária.
Logo, entra em cena um novo personagem - outro robozinho, totalmente distinto, novíssimo e de design futurista. Vem então a segunda parte do filme, a da aventura. E, como toda boa aventura cinematográfica, regada a um romance. Ah, sim, aqui as máquinas são também capazes de se apaixonar! (Mas será que haverá correspondência...?)
Máquinas com olhinhos pidões
O que aconteceu com a Terra? Para onde foram todas as pessoas? Qual o papel das duas máquinas nisso? O espectador vai descobrindo na medida em que a trama corre. A história é boa - na primeira parte, o espectador é levado pela mão a explorar o curioso cenário ficcional dessa animação; agora, ele é um detetive, destrinchando aos poucos o mistério, reconstruindo a trama; no trecho final, vibrará com a aventura e a ação. Primeiro o lúdico, depois a inteligência, depois o entusiasmo.
E tudo permeado com a emoção carinhosa transmitida por um insólito romance entre máquinas. Mas o que atrai mesmo não é somente essa estrutura: as maquininhas, oh!, são muito expressivas! Esses olhinhos "pidões", esses movimentos quase humanos - mesmo que o robozinho mais pareça um caixote, um ovo ou um simples círculo dependurado no teto!
De brinde, uma homenagem ao antológico "E.T. - O Extraterrestre", de Steven Spielberg. Os espectadores ao redor dos seus 40 anos hão de se lembrar do mar de emoção que foi essa película inesquecível para a criançada. E vão notar facilmente a semelhança entre Wall-E e o querido e enrugado alienígena. Não é apenas uma apropriação pura e simples, pois em certos momentos, a citação é obvia demais, tanto na imagem quanto nos movimentos da cabeça e no jeito de falar.
Comecei a ver esse filme quando zapeava na TV a cabo e cliquei no canal segundos antes de ele começar. Vi até o fim. Coisa rara quando zapeio. Animaçãozinha encantadora.
É um robozinho simples, já desgastado, movido a energia solar. A expressividade de sua aparência e seus movimentos testemunha a competência dos animadores do filme "Wall-E" (pronuncia-se "Uólii"). Mesmo considerando o que o fundador das empresas Disney conseguiu fazer com um camundongo, o resultado que a sua associada Pixar obteve para o robozinho velho e sujo é surpreendente. E lograram uma textura bastante agradável para um cenário desértico de lixo e destruição.
Na primeira parte do desenho, o espectador é um voyeur observando a divertida atividade diária da maquininha. Onde ela dorme (energia solar não está disponivel o dia todo...), como começa seus trabalhos, o que faz com o que vai encontrando pelo caminho.
Até que, claro, encontra algo diferente. Mas eis que nesse universo ficcional as máquinas têm caprichos, interesses próprios e curiosidade - e conseguem com dificuldade pronunciar seus próprios nomes. E a curiosidade de Wall-E o faz distanciar-se completamente de sua diretriz primária.
Logo, entra em cena um novo personagem - outro robozinho, totalmente distinto, novíssimo e de design futurista. Vem então a segunda parte do filme, a da aventura. E, como toda boa aventura cinematográfica, regada a um romance. Ah, sim, aqui as máquinas são também capazes de se apaixonar! (Mas será que haverá correspondência...?)
Máquinas com olhinhos pidões
O que aconteceu com a Terra? Para onde foram todas as pessoas? Qual o papel das duas máquinas nisso? O espectador vai descobrindo na medida em que a trama corre. A história é boa - na primeira parte, o espectador é levado pela mão a explorar o curioso cenário ficcional dessa animação; agora, ele é um detetive, destrinchando aos poucos o mistério, reconstruindo a trama; no trecho final, vibrará com a aventura e a ação. Primeiro o lúdico, depois a inteligência, depois o entusiasmo.
E tudo permeado com a emoção carinhosa transmitida por um insólito romance entre máquinas. Mas o que atrai mesmo não é somente essa estrutura: as maquininhas, oh!, são muito expressivas! Esses olhinhos "pidões", esses movimentos quase humanos - mesmo que o robozinho mais pareça um caixote, um ovo ou um simples círculo dependurado no teto!
De brinde, uma homenagem ao antológico "E.T. - O Extraterrestre", de Steven Spielberg. Os espectadores ao redor dos seus 40 anos hão de se lembrar do mar de emoção que foi essa película inesquecível para a criançada. E vão notar facilmente a semelhança entre Wall-E e o querido e enrugado alienígena. Não é apenas uma apropriação pura e simples, pois em certos momentos, a citação é obvia demais, tanto na imagem quanto nos movimentos da cabeça e no jeito de falar.
Comecei a ver esse filme quando zapeava na TV a cabo e cliquei no canal segundos antes de ele começar. Vi até o fim. Coisa rara quando zapeio. Animaçãozinha encantadora.
sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011
Para que serve o Twitter, afinal?
Quando entrei no Twitter, minha primeira micromensagem foi assim:
Pois é. Para que serve o Twitter, afinal? Essa maçaroca de mensagens telegráficas sobre assuntos aleatórios?
O Twitter se molda ao usuário - Bom, em pouco tempo descobri para que ele serve para mim. Pois, na verdade, o Twitter é um sistema que vai se moldando ao usuário na medida em que ele o usa, adquirindo funções diferentes dependendo da pessoa. Por meio de quem a gente segue, e por meio dos tuítes a que damos atenção, a gente forma o perfil das mensagens que a gente recebe e vai "montando" uma maquininha com uma certas funções. Para mim, por exemplo, a principal função é uma drástica diversificação das fontes de notícias. Outras pessoas vão usar de outras formas. É um coringa.
Diversificação das fontes - Antes de aderir ao "microblog", eu lia basicamente dois ou três jornais por dia pela Internet e algumas poucas fontes de outros tipos. E isso - importante, agora! - na midia mainstream. Dizer que a gente deve procurar outras visões é bonito, mas o problema é que era excessivamente trabalhoso ir atrás de dezenas de sites com ângulos alternativos todo dia. Com o Twitter, não preciso mais fazer isso: eles vêm até mim. Com isso, multipliquei dramaticamente a variedade do que leio e, mais importante, posso receber coisas vindas de fontes absolutamente à margem do mainstream. O underground emerge.
Não faço isso apenas seguindo os tuítes dessas fontes. Grande parte delas vêm de amigos meus que tuítam por aí. É como normalmente as fontes alternativas são divulgadas: no boca-a-boca. Só que as redes sociais potencializam e multiplicam esse efeito. Sim, as redes sociais virtuais aumentam o espaço para as opiniões alternativas e diminuem a da visão majoritária. Pelo menos, para mentes críticas, que se abrem para isso (para mentes fechadas, a Internet pode servir como uma grande caixa de ressonância conservadora).
Promoção do alternativo e do "não-institucional" - Também diminuiu muito minha escravidão da grande mídia com grandes apartatos de divulgação. A internet com conteúdo feito pelo usuário dá visibilidade para quem tem o que dizer e não tem uma grande instituição difusora por detrás. Aparecem links para uma quantidade de blogs, artigos em espanhol e em inglês, que eu jamais conseguiria alcançar de outra forma.
Redes de contatos - Mas isso é só a principal função do Twitter para mim. Há várias outras. Uma boa é gerenciamento de contatos. Já várias vezes me aproximei de pessoas interessantes pelo Twitter. Se ela costumar mandar e responder mensagens, a ideia é comentar alguma coisa que ela envia. Ela responde e, assim, vai-se criando uma ligação, ambos vão se acostumando com a cara um do outro, adquirem proximidade. Isso é mais difícil de se fazer por outros meios, porque o Twitter "achata" a variação de distâncias entre pessoas comuns e personalidades mais públicas - e até mesmo instituições (você pode fazer o mesmo com os tuiteiros de instituições).
O efeito "sensação de intimidade" - Detectei um curioso fenômeno nessa experiência de gerenciar contatos pelo Twitter. Ao seguir uma pessoa, mesmo que não interaja com ela, é comum que se desenvolva um vínculo, uma familiaridade mais íntima com ela. Talvez tenha algo a ver com o que o jornalista Clive Thompson chamou de "propriocepção social". Acontece que funciona no sentido contrário, também. Quem te segue pode desenvolver a mesma intimidade com relação a você. De modo que é possível usar esse efeito para construir redes de contatos. Literalmente, usar o Twitter para desenvolver percepção de intimidade com outras pessoas.
Manter lembranças de experiências - Eu uso esse efeito sobre a intimidade também para manter vínculos com lugares e coisas. Certa vez fiz uma viagem à Argentina e não queria que, quando eu voltasse, toda aquela magia desaparecesse de repente, substituída pela volta ao batente nu e cru. Queria que não fosse apenas uma experiência passageira que some assim que o doce acaba. Então comecei a seguir o Twitter do jornal La Nación. Simplesmente lendo algumas coisas que apareciam. Funcionou! Aquele belo país manteve sua presença na superfície da minha mente e fico muito feliz com isso.
Os outros lados
Peremptório x matizado - Apesar de o Twitter ter a "cara" do tuiteiro, há problemas estruturais que são mais gerais. Um é que, com menagens tão pequenas, a tendência é privilegiar as opiniões peremptórias e dificultar a veiculação das visões matizadas, que requerem mais espaço. Em um outro post, em um dos últimos parágrafos, critiquei o Twitter em parte por causa disso. Para variar, o Twitter também tem dois lados. Pode servir para expandir sua mente, seu conhecimento, sua percepção sobre o mundo, ou para contribuir no sentido inteiramente oposto - ainda mais tendo em vista a fugacidade das mensagens (se não são lidas em minutos, perdem-se num imenso "arquivo morto" tuital; e sua rápida sucessão faz tendermos a esquecê-las). Como tudo, depende de como é usada.
Autocentrismo x interação - Outro problema é que as pessoas parecem tender a falar mais de si mesmas ou de espalhar sua própria opinião para o mundo do que participar de uma interação propriamente dita. Um exemplo ilustrativo foi uma amiga com centenas de seguidores que tuitou que iria fazer uma prova importante e ninguém lhe desejou boa prova. Bem, talvez eu esteja simplesmente exigindo do Twitter alguma coisa que ele não é.
Experiencial
Deve haver inúmeras funções possíveis das redes sociais, dependendo de quem a usa. Os egípcios da praça Tahrir que o digam. De qualquer forma, como disse o Clive Thompson, não dá para entender o Twitter apenas passando a vista em tuítes aleatórios de outras pessoas. Vai parecer fútil e sem sentido. O Twitter é experiencial. Para compreendê-lo, é preciso experimentá-lo.
"Ho ho! (como diria o Papai Noel) Acabo de entrar no tweeter. Tendo não mais que uma vaguíssima idéia sobre o que seja essa birosca."E já vi inúmeros "primeiros tuítes" com conteúdo semelhante: "Meu Deus, o que estou fazendo aqui??"
Pois é. Para que serve o Twitter, afinal? Essa maçaroca de mensagens telegráficas sobre assuntos aleatórios?
O Twitter se molda ao usuário - Bom, em pouco tempo descobri para que ele serve para mim. Pois, na verdade, o Twitter é um sistema que vai se moldando ao usuário na medida em que ele o usa, adquirindo funções diferentes dependendo da pessoa. Por meio de quem a gente segue, e por meio dos tuítes a que damos atenção, a gente forma o perfil das mensagens que a gente recebe e vai "montando" uma maquininha com uma certas funções. Para mim, por exemplo, a principal função é uma drástica diversificação das fontes de notícias. Outras pessoas vão usar de outras formas. É um coringa.
Diversificação das fontes - Antes de aderir ao "microblog", eu lia basicamente dois ou três jornais por dia pela Internet e algumas poucas fontes de outros tipos. E isso - importante, agora! - na midia mainstream. Dizer que a gente deve procurar outras visões é bonito, mas o problema é que era excessivamente trabalhoso ir atrás de dezenas de sites com ângulos alternativos todo dia. Com o Twitter, não preciso mais fazer isso: eles vêm até mim. Com isso, multipliquei dramaticamente a variedade do que leio e, mais importante, posso receber coisas vindas de fontes absolutamente à margem do mainstream. O underground emerge.
Não faço isso apenas seguindo os tuítes dessas fontes. Grande parte delas vêm de amigos meus que tuítam por aí. É como normalmente as fontes alternativas são divulgadas: no boca-a-boca. Só que as redes sociais potencializam e multiplicam esse efeito. Sim, as redes sociais virtuais aumentam o espaço para as opiniões alternativas e diminuem a da visão majoritária. Pelo menos, para mentes críticas, que se abrem para isso (para mentes fechadas, a Internet pode servir como uma grande caixa de ressonância conservadora).
Promoção do alternativo e do "não-institucional" - Também diminuiu muito minha escravidão da grande mídia com grandes apartatos de divulgação. A internet com conteúdo feito pelo usuário dá visibilidade para quem tem o que dizer e não tem uma grande instituição difusora por detrás. Aparecem links para uma quantidade de blogs, artigos em espanhol e em inglês, que eu jamais conseguiria alcançar de outra forma.
Redes de contatos - Mas isso é só a principal função do Twitter para mim. Há várias outras. Uma boa é gerenciamento de contatos. Já várias vezes me aproximei de pessoas interessantes pelo Twitter. Se ela costumar mandar e responder mensagens, a ideia é comentar alguma coisa que ela envia. Ela responde e, assim, vai-se criando uma ligação, ambos vão se acostumando com a cara um do outro, adquirem proximidade. Isso é mais difícil de se fazer por outros meios, porque o Twitter "achata" a variação de distâncias entre pessoas comuns e personalidades mais públicas - e até mesmo instituições (você pode fazer o mesmo com os tuiteiros de instituições).
O efeito "sensação de intimidade" - Detectei um curioso fenômeno nessa experiência de gerenciar contatos pelo Twitter. Ao seguir uma pessoa, mesmo que não interaja com ela, é comum que se desenvolva um vínculo, uma familiaridade mais íntima com ela. Talvez tenha algo a ver com o que o jornalista Clive Thompson chamou de "propriocepção social". Acontece que funciona no sentido contrário, também. Quem te segue pode desenvolver a mesma intimidade com relação a você. De modo que é possível usar esse efeito para construir redes de contatos. Literalmente, usar o Twitter para desenvolver percepção de intimidade com outras pessoas.
Manter lembranças de experiências - Eu uso esse efeito sobre a intimidade também para manter vínculos com lugares e coisas. Certa vez fiz uma viagem à Argentina e não queria que, quando eu voltasse, toda aquela magia desaparecesse de repente, substituída pela volta ao batente nu e cru. Queria que não fosse apenas uma experiência passageira que some assim que o doce acaba. Então comecei a seguir o Twitter do jornal La Nación. Simplesmente lendo algumas coisas que apareciam. Funcionou! Aquele belo país manteve sua presença na superfície da minha mente e fico muito feliz com isso.
Os outros lados
Peremptório x matizado - Apesar de o Twitter ter a "cara" do tuiteiro, há problemas estruturais que são mais gerais. Um é que, com menagens tão pequenas, a tendência é privilegiar as opiniões peremptórias e dificultar a veiculação das visões matizadas, que requerem mais espaço. Em um outro post, em um dos últimos parágrafos, critiquei o Twitter em parte por causa disso. Para variar, o Twitter também tem dois lados. Pode servir para expandir sua mente, seu conhecimento, sua percepção sobre o mundo, ou para contribuir no sentido inteiramente oposto - ainda mais tendo em vista a fugacidade das mensagens (se não são lidas em minutos, perdem-se num imenso "arquivo morto" tuital; e sua rápida sucessão faz tendermos a esquecê-las). Como tudo, depende de como é usada.
Autocentrismo x interação - Outro problema é que as pessoas parecem tender a falar mais de si mesmas ou de espalhar sua própria opinião para o mundo do que participar de uma interação propriamente dita. Um exemplo ilustrativo foi uma amiga com centenas de seguidores que tuitou que iria fazer uma prova importante e ninguém lhe desejou boa prova. Bem, talvez eu esteja simplesmente exigindo do Twitter alguma coisa que ele não é.
Experiencial
Deve haver inúmeras funções possíveis das redes sociais, dependendo de quem a usa. Os egípcios da praça Tahrir que o digam. De qualquer forma, como disse o Clive Thompson, não dá para entender o Twitter apenas passando a vista em tuítes aleatórios de outras pessoas. Vai parecer fútil e sem sentido. O Twitter é experiencial. Para compreendê-lo, é preciso experimentá-lo.
P.S. 1 - Este texto é o desenvolvimento de um comentário que pus num post sobre o mesmo assunto do blog Lousa Digital, de Sônia Bertocchi.
P.2. 2 - Se quiserem uma visão mais aprofundada das redes sociais, tem este livro da Raquel Recuero: "Redes sociais na Internet", disponível para download.
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011
Cisne Negro
Saí chocado do filme "Cisne Negro". Nunca antes uma película de cinema havia me causado tal efeito. Passei rapidamente numa livraria depois; ao sair, ainda estava arfando. Demorei para voltar daquele estranho universo paralelo ao qual fui catapultado.
Seguindo a dinâmica das grandes óperas e peças de dança, o filme começou tranquilo, pianissimo, mas foi crescendo, crescendo, envolvendo, envolvendo, até chegar num clímax fortissimo e definitivo, um grand finale inesquecível.
A metáfora tem múltiplas dimensões. A própria vida da personagem principal, a bailarina Nina Sayers, interpretada intensamente por Nathalie Portman, assemelha-se à inspiração da história, o balé "O lago dos cisnes", de Tchaikovsky. O crescendo do filme acompanha também a "libertação interior" da personagem. Inicialmente uma personalidade contida e obcecada com a técnica, vai libertando paulatinamente o seu "cisne negro" - o lado da paixão intensa, que vem das entranhas, que mantinha cuidadosamente oculto em seu interior.
É também uma contraposição entre a linha estritamente técnica de interpretação de obras de arte e a linha "visceral", que usa a técnica como instrumento para conseguir expressar a sensibilidade e alcançar a expressão mais profunda do eu do artista - e atingir sensibilidades igualmente profundas dentro do espectador.
Que, salta aos olhos, é a linha do diretor Darren Aronofsky e dos quatro roteiristas (é produção independente). Quem assiste nas cadeiras do cinema vai sendo envolvido até os ossos por uma articulação mestra entre doses crescentes de suspense e de mistura entre o real e o onírico, que acompanham a contínua "descida ao abismo" do lado negro da alma, e uma cuidadosa estratégia de identificação espectador-personagem. O efeito é explosivo, arrepiante.
Aliado a isso, grandes interpretações. A atuação radical de Nathalie Portman é distante de tudo o que tem feito ultimamente. Outras duas atrizes, Mila Kunis (Lily) e Barbara Hershey (a mãe de Nina), fazem com Nathalie uma envolvente "dança" de dominação, manipulação e libertação entre três personagens intensos. Wynona Ryder (Beth), que está surpreendente, completa o quarteto feminino; sua personagem aparece pouco, mas na quantidade justa para marcar todo o espaço da obra - talvez porque encarne um medo permanente de Nina, contra o qual ela luta o tempo todo, fazendo Beth estar simbolicamente presente e atuante na maior parte do filme. Em meio ao ambiente de ciumeira do meio artístico, o processo de transição de Nina é múltiplo: metaforizam-se mutuamente, como numa rede de metassignificados, o desabrochar sexual, o conflito com as amarras da mãe, o amadurecimento artístico - mas, principalmente, a luta cada vez mais desesperada contra si mesma.
Mas o resultado pleno jamais seria alcançado sem o modo genial como foi utilizada a trilha sonora de Tchaikovsky. Escritores e compositores russos do século XIX e início do XX - Dostoievsky, Tchaikovsky, Rachmaninoff - possuem uma carga de paixão em suas obras de uma intensidade difícil de se igualar. Acessar essa caixa de pandora é que é uma arte à parte. Certas obras de Tchaikovsky pertencem àquela classe que possui um potencial de efeito mágico que raramente é alcançado pelas execuções, seja no palco, seja em ambientações em filmes de cinema. São músicas carregadas de sentimento, mas que precisam de alguém que as faça "chegar lá". Quando isso acontece, o espectador entra em outra dimensão.
Demorei para voltar.
Seguindo a dinâmica das grandes óperas e peças de dança, o filme começou tranquilo, pianissimo, mas foi crescendo, crescendo, envolvendo, envolvendo, até chegar num clímax fortissimo e definitivo, um grand finale inesquecível.
A metáfora tem múltiplas dimensões. A própria vida da personagem principal, a bailarina Nina Sayers, interpretada intensamente por Nathalie Portman, assemelha-se à inspiração da história, o balé "O lago dos cisnes", de Tchaikovsky. O crescendo do filme acompanha também a "libertação interior" da personagem. Inicialmente uma personalidade contida e obcecada com a técnica, vai libertando paulatinamente o seu "cisne negro" - o lado da paixão intensa, que vem das entranhas, que mantinha cuidadosamente oculto em seu interior.
É também uma contraposição entre a linha estritamente técnica de interpretação de obras de arte e a linha "visceral", que usa a técnica como instrumento para conseguir expressar a sensibilidade e alcançar a expressão mais profunda do eu do artista - e atingir sensibilidades igualmente profundas dentro do espectador.
Que, salta aos olhos, é a linha do diretor Darren Aronofsky e dos quatro roteiristas (é produção independente). Quem assiste nas cadeiras do cinema vai sendo envolvido até os ossos por uma articulação mestra entre doses crescentes de suspense e de mistura entre o real e o onírico, que acompanham a contínua "descida ao abismo" do lado negro da alma, e uma cuidadosa estratégia de identificação espectador-personagem. O efeito é explosivo, arrepiante.
Aliado a isso, grandes interpretações. A atuação radical de Nathalie Portman é distante de tudo o que tem feito ultimamente. Outras duas atrizes, Mila Kunis (Lily) e Barbara Hershey (a mãe de Nina), fazem com Nathalie uma envolvente "dança" de dominação, manipulação e libertação entre três personagens intensos. Wynona Ryder (Beth), que está surpreendente, completa o quarteto feminino; sua personagem aparece pouco, mas na quantidade justa para marcar todo o espaço da obra - talvez porque encarne um medo permanente de Nina, contra o qual ela luta o tempo todo, fazendo Beth estar simbolicamente presente e atuante na maior parte do filme. Em meio ao ambiente de ciumeira do meio artístico, o processo de transição de Nina é múltiplo: metaforizam-se mutuamente, como numa rede de metassignificados, o desabrochar sexual, o conflito com as amarras da mãe, o amadurecimento artístico - mas, principalmente, a luta cada vez mais desesperada contra si mesma.
Mas o resultado pleno jamais seria alcançado sem o modo genial como foi utilizada a trilha sonora de Tchaikovsky. Escritores e compositores russos do século XIX e início do XX - Dostoievsky, Tchaikovsky, Rachmaninoff - possuem uma carga de paixão em suas obras de uma intensidade difícil de se igualar. Acessar essa caixa de pandora é que é uma arte à parte. Certas obras de Tchaikovsky pertencem àquela classe que possui um potencial de efeito mágico que raramente é alcançado pelas execuções, seja no palco, seja em ambientações em filmes de cinema. São músicas carregadas de sentimento, mas que precisam de alguém que as faça "chegar lá". Quando isso acontece, o espectador entra em outra dimensão.
Demorei para voltar.
terça-feira, 22 de fevereiro de 2011
A ditadura segundo um ex-alienado
Testemunhos sobre a ditadura militar brasileira (1964-1985) vêm invariavelmente de pessoas que têm muita história de sofrimento para contar ou então de outras que estavam "do lado de lá". Nunca vi, porém, um depoimento de alguém que realmente não estivesse nem aí na época, um alienado total.
O pepino é que muitas vezes os regimes autoritários "ensinam" para esses tipos que certas coisas absolutamente bizarras são normais. E creio que eles constituem uma porção bastante grande da sociedade.
Senão, vejamos. Eu soube que estávamos numa ditadura aos 16 anos, quando acompanhávamos pela TV a apuração das eleições indiretas em 1984 e um tio me deu a preciosa informação.
Como isso pôde acontecer? Dois motivos. (1) Eu não estava nem aí (não lia jornais, achava um saco). (2) Ninguém me disse. É no (2) que se encontra o grande problema. Grande parte da população brasileira simplesmente "entrava no esquema", pois era o modo de se sobreviver nos empregos e nos cargos. Isso significava, muitas vezes, calar-se. Especialmente diante dos jovens.
Mas, enquanto os adultos se calavam, coisas aconteciam ao redor de nós, crianças. Pequenas coisas. Que nos "ensinavam" grandes coisas.
"Não pode."
Vejam só: quando eu era bem pequeno, um familiar teve a brilhante ideia de dar ao seu periquito de estimação, confinado numa gaiola como todo pássaro doméstico, o singelo nome de "Ernesto".
Era a época do presidente Ernesto Geisel, e mesmo a mais inocente das crianças certamente ouvia esse nome soar aqui e ali, introjetava o som e podia repeti-lo ao léu com a consciência de um papagaio. Belo dia, olhei para a ave amarela e verdinha, que me vigiava atenta olhando de lado, e pronunciei: "Ernesssto Gaaaaaisel".
Ao que alguém prontamente advertiu: "O que é isso!? Não pode! Ernesto Geisel é o nome do presidente da Repúúwwblica!"
E foi então que aprendi que chamar um periquito pelo nome do presidente era feio. Associação: não se pode desacatar o presidente.
Parece coisinha besta, mas crianças são (entre muitas outras coisas) esponjas: elas aprendem rapidamente não apenas instruções objetivas, mas modos de agir e de pensar por detrás de atos e palavras. Pergunto-me: o que atitudes como essa ensinavam para a criançada?
Havia o outro lado da moeda. Em Pedro Leopoldo, interior de Minas, havia uma cadeia perto de casa. O pessoal me proibia de passar na frente; tinha que ser sempre na outra calçada. Diziam que, se criança passasse ali, "polícia pega". Mais ou menos como me falavam dos ciganos (de vez em quando aparecia algum perambulando pela cidade com um grande saco branco pendurado nas costas): não era para chegar perto, senão a "dona" jogava a criança no saco e ia embora com ela.
Não sei bem se é por isso que até hoje eu tenho vontade de mudar de calçada se passo na frente de uma delegacia ou se cruzo com um policial, como se se tratasse de um delinquente mal-encarado. (O engraçado é que isso não acontece com soldados do Exército. Não tenho nenhum problema com eles.)
Numa dessas, há poucos anos, exagerei nos "cuidados" e uns caras de um carro de polícia em Brasília acabaram me abordando e me revistando, eu com as mãos numa árvore. Acharam que quem desconfiava tanto de policiais tinha que ter algum esqueleto dentro da mochila.
Educação "de fundo"
Coisas menos "pequenas" também aconteciam ao nosso redor, à nossa vista.
Costuma-se identificar a ditadura com governos. Mas o autoritarismo do Estado tem tentáculos que vão muito além. Infiltram-se pelas instituições de alto a baixo, que reproduzem na sua estrutura a hierarquia e os desmandos e arbitrariedades do topo. A quantidade de gente que participava desse vasto e capilar aparato autoritário era impressionante.
No colégio onde estudei o ensino médio e a maior parte do fundamental, aprendíamos exercícios militares na Educação Física: Cobrir! Sennntido! Meia-volta, volver! Aprendi um truque com os pés para rodar no "meia-volta, volver" que faz meu corpo parecer girar parado. No fim do recreio e logo antes de começarem as aulas, executávamos o que aprendêramos, quando as turmas se concentravam em filas e um inspetor berrava lá na frente: "Cobrir! Firmes! Cobrir! Firmes! Cobrir! Firmes!"
Esse inspetor tinha um nome sonoro - "Schmidt" - e era o terror da turma. Se alguém fazia uma baderna realmente inaceitável durante uma aula, o professor berrava: "Vai pro ximíti!!!", apontando com o dedo para a porta como para enxotar um cão. E lá ia o aluno de orelhas baixas. Só não se sabe se ele rumava mesmo para a sala do dito ou se ia tomar Coca na cantina (uma vez me mandaram para lá e eu juro que fui até a sala do homem - e não aconteceu nada lá).
Havia os que se indignavam e construíam uma reação dentro de si (depois de conversar com certo número de gente, percebi que essas pessoas eram os que liam jornais). Mas havia quem "recebesse" o "ensinamento de fundo" de como se deveria comportar diante de uma autoridade despótica. De qualquer autoridade.
E talvez de como se comportar como autoridade. Quando o professor tinha que se ausentar por qualquer motivo, colocava na frente da sala um aluno cuja função era observar bem a turma e marcar no quadro o nome de quem fizesse alguma coisa errada. A coisa interessante era que, em geral, o aluno se esmerava bastante bem nessa tarefa (claro que alguns avacalhavam gostosamente).
O Schimidt parecia até manso perto de outro inspetor, que também dava aulas de algumas matérias, e que era de um autoritarismo quase demente. Certa vez, irrompeu pela nossa sala, interrompendo a de outro professor, para reclamar que a outra turma (!) tinha feito intolerável algazarra e então passou a chamar-nos de "seus bostinhas!!!", aos gritos, batendo os pés no chão feito uma criança contrariada. Esse estropício também dava aulas de inglês e de... religião (era um colégio franciscano).
Acho que ele representava a versão da escola da "face violenta" do regime. O resto da administração representava a "face Brasil ame-o ou deixe-o".
A moral é cívica, o civismo é moral e tudo é dirigido
E tinha, claro, aquela matéria estranhíssima, Educação Moral e Cívica. Era abordada com o método do "estudo dirigido" - havia um livro com lacunas no texto e tínhamos que preenchê-las. Coisas como "o que é virtude", "o que é Estado" etc. Ou seja, eles "ensinavam" valores morais associando-os por superposição ao conhecimento sobre a estrutura do Estado e do que então era considerado "politicamente correto". Na prova, faziam perguntas que só respondia quem decorava.
O método era tão eficiente que, após quatro anos disso, a única coisa que aprendi foi que "os elementos do Estado são: governo, território e povo". Caiu numa prova e acertei. Espero que tenha sido só isso, mesmo. Mas tenho dúvidas muito sérias a respeito.
Coisa interessante era que o professor de Educação Moral e Cívica era também professor de religião...
(Esse professor, aliás, certa vez desistiu de tudo, vendeu seus bens e passou a vender churros no pátio do colégio, diante dos olhos atônitos dos alunos; depois arrumou um emprego de garçon numa lanchonete árabe - foi o único que vi fazer jus à ascendência franciscana da escola, enquanto os freis de batina andavam de carro).
E aí parecia haver crianças que reagiam desenvolvendo um senso de reação à autoridade agudo e outras que simplesmente aprendiam a obedecer.
Tudo isso me remete a uma coisa terrível, que tem a ver com o que Caetano Veloso falou no show "Circuladô" em Curitiba, antes de cantar "Debaixo dos caracóis" - aquela música que o Roberto Carlos fez para ele quando estava exilado em Londres. Caê referiu-se às origens da ditadura com a expressão, dita bem pausadamente, "coisas vindas de regiões profundas do ser do Brasil".
Quando leio sobre a História do Brasil, tendo muito a concordar com isso. Tem a ver conosco - nós, enquanto nação, enquanto povo. Com certos elementos lá dentro do "ser do Brasil". Sem esquecer, obviamente, das conjunturas históricas, e sem despolitizar a questão. É que isso também faz parte dessas conjunturas. Se esquecermos disso, se acharmos que tudo veio só de uma classe militar com mentalidade "retrógrada", pode acontecer novamente.
De qualquer forma, Caetano logo logo arrematou que a música do Roberto representava manifestações vindas de "regiões igualmente profundas do ser do Brasil".
O pepino é que muitas vezes os regimes autoritários "ensinam" para esses tipos que certas coisas absolutamente bizarras são normais. E creio que eles constituem uma porção bastante grande da sociedade.
Senão, vejamos. Eu soube que estávamos numa ditadura aos 16 anos, quando acompanhávamos pela TV a apuração das eleições indiretas em 1984 e um tio me deu a preciosa informação.
Como isso pôde acontecer? Dois motivos. (1) Eu não estava nem aí (não lia jornais, achava um saco). (2) Ninguém me disse. É no (2) que se encontra o grande problema. Grande parte da população brasileira simplesmente "entrava no esquema", pois era o modo de se sobreviver nos empregos e nos cargos. Isso significava, muitas vezes, calar-se. Especialmente diante dos jovens.
Mas, enquanto os adultos se calavam, coisas aconteciam ao redor de nós, crianças. Pequenas coisas. Que nos "ensinavam" grandes coisas.
"Não pode."
Vejam só: quando eu era bem pequeno, um familiar teve a brilhante ideia de dar ao seu periquito de estimação, confinado numa gaiola como todo pássaro doméstico, o singelo nome de "Ernesto".
Era a época do presidente Ernesto Geisel, e mesmo a mais inocente das crianças certamente ouvia esse nome soar aqui e ali, introjetava o som e podia repeti-lo ao léu com a consciência de um papagaio. Belo dia, olhei para a ave amarela e verdinha, que me vigiava atenta olhando de lado, e pronunciei: "Ernesssto Gaaaaaisel".
Ao que alguém prontamente advertiu: "O que é isso!? Não pode! Ernesto Geisel é o nome do presidente da Repúúwwblica!"
E foi então que aprendi que chamar um periquito pelo nome do presidente era feio. Associação: não se pode desacatar o presidente.
Parece coisinha besta, mas crianças são (entre muitas outras coisas) esponjas: elas aprendem rapidamente não apenas instruções objetivas, mas modos de agir e de pensar por detrás de atos e palavras. Pergunto-me: o que atitudes como essa ensinavam para a criançada?
Havia o outro lado da moeda. Em Pedro Leopoldo, interior de Minas, havia uma cadeia perto de casa. O pessoal me proibia de passar na frente; tinha que ser sempre na outra calçada. Diziam que, se criança passasse ali, "polícia pega". Mais ou menos como me falavam dos ciganos (de vez em quando aparecia algum perambulando pela cidade com um grande saco branco pendurado nas costas): não era para chegar perto, senão a "dona" jogava a criança no saco e ia embora com ela.
Não sei bem se é por isso que até hoje eu tenho vontade de mudar de calçada se passo na frente de uma delegacia ou se cruzo com um policial, como se se tratasse de um delinquente mal-encarado. (O engraçado é que isso não acontece com soldados do Exército. Não tenho nenhum problema com eles.)
Numa dessas, há poucos anos, exagerei nos "cuidados" e uns caras de um carro de polícia em Brasília acabaram me abordando e me revistando, eu com as mãos numa árvore. Acharam que quem desconfiava tanto de policiais tinha que ter algum esqueleto dentro da mochila.
Educação "de fundo"
Coisas menos "pequenas" também aconteciam ao nosso redor, à nossa vista.
Costuma-se identificar a ditadura com governos. Mas o autoritarismo do Estado tem tentáculos que vão muito além. Infiltram-se pelas instituições de alto a baixo, que reproduzem na sua estrutura a hierarquia e os desmandos e arbitrariedades do topo. A quantidade de gente que participava desse vasto e capilar aparato autoritário era impressionante.
No colégio onde estudei o ensino médio e a maior parte do fundamental, aprendíamos exercícios militares na Educação Física: Cobrir! Sennntido! Meia-volta, volver! Aprendi um truque com os pés para rodar no "meia-volta, volver" que faz meu corpo parecer girar parado. No fim do recreio e logo antes de começarem as aulas, executávamos o que aprendêramos, quando as turmas se concentravam em filas e um inspetor berrava lá na frente: "Cobrir! Firmes! Cobrir! Firmes! Cobrir! Firmes!"
Esse inspetor tinha um nome sonoro - "Schmidt" - e era o terror da turma. Se alguém fazia uma baderna realmente inaceitável durante uma aula, o professor berrava: "Vai pro ximíti!!!", apontando com o dedo para a porta como para enxotar um cão. E lá ia o aluno de orelhas baixas. Só não se sabe se ele rumava mesmo para a sala do dito ou se ia tomar Coca na cantina (uma vez me mandaram para lá e eu juro que fui até a sala do homem - e não aconteceu nada lá).
Havia os que se indignavam e construíam uma reação dentro de si (depois de conversar com certo número de gente, percebi que essas pessoas eram os que liam jornais). Mas havia quem "recebesse" o "ensinamento de fundo" de como se deveria comportar diante de uma autoridade despótica. De qualquer autoridade.
E talvez de como se comportar como autoridade. Quando o professor tinha que se ausentar por qualquer motivo, colocava na frente da sala um aluno cuja função era observar bem a turma e marcar no quadro o nome de quem fizesse alguma coisa errada. A coisa interessante era que, em geral, o aluno se esmerava bastante bem nessa tarefa (claro que alguns avacalhavam gostosamente).
O Schimidt parecia até manso perto de outro inspetor, que também dava aulas de algumas matérias, e que era de um autoritarismo quase demente. Certa vez, irrompeu pela nossa sala, interrompendo a de outro professor, para reclamar que a outra turma (!) tinha feito intolerável algazarra e então passou a chamar-nos de "seus bostinhas!!!", aos gritos, batendo os pés no chão feito uma criança contrariada. Esse estropício também dava aulas de inglês e de... religião (era um colégio franciscano).
Acho que ele representava a versão da escola da "face violenta" do regime. O resto da administração representava a "face Brasil ame-o ou deixe-o".
A moral é cívica, o civismo é moral e tudo é dirigido
E tinha, claro, aquela matéria estranhíssima, Educação Moral e Cívica. Era abordada com o método do "estudo dirigido" - havia um livro com lacunas no texto e tínhamos que preenchê-las. Coisas como "o que é virtude", "o que é Estado" etc. Ou seja, eles "ensinavam" valores morais associando-os por superposição ao conhecimento sobre a estrutura do Estado e do que então era considerado "politicamente correto". Na prova, faziam perguntas que só respondia quem decorava.
O método era tão eficiente que, após quatro anos disso, a única coisa que aprendi foi que "os elementos do Estado são: governo, território e povo". Caiu numa prova e acertei. Espero que tenha sido só isso, mesmo. Mas tenho dúvidas muito sérias a respeito.
Coisa interessante era que o professor de Educação Moral e Cívica era também professor de religião...
(Esse professor, aliás, certa vez desistiu de tudo, vendeu seus bens e passou a vender churros no pátio do colégio, diante dos olhos atônitos dos alunos; depois arrumou um emprego de garçon numa lanchonete árabe - foi o único que vi fazer jus à ascendência franciscana da escola, enquanto os freis de batina andavam de carro).
E aí parecia haver crianças que reagiam desenvolvendo um senso de reação à autoridade agudo e outras que simplesmente aprendiam a obedecer.
Tudo isso me remete a uma coisa terrível, que tem a ver com o que Caetano Veloso falou no show "Circuladô" em Curitiba, antes de cantar "Debaixo dos caracóis" - aquela música que o Roberto Carlos fez para ele quando estava exilado em Londres. Caê referiu-se às origens da ditadura com a expressão, dita bem pausadamente, "coisas vindas de regiões profundas do ser do Brasil".
Quando leio sobre a História do Brasil, tendo muito a concordar com isso. Tem a ver conosco - nós, enquanto nação, enquanto povo. Com certos elementos lá dentro do "ser do Brasil". Sem esquecer, obviamente, das conjunturas históricas, e sem despolitizar a questão. É que isso também faz parte dessas conjunturas. Se esquecermos disso, se acharmos que tudo veio só de uma classe militar com mentalidade "retrógrada", pode acontecer novamente.
De qualquer forma, Caetano logo logo arrematou que a música do Roberto representava manifestações vindas de "regiões igualmente profundas do ser do Brasil".
Obs.: A imagem no início deste texto, retirada de um vídeo do Youtube, mostra a imagem do documento que comprovava a liberação, pela Censura Federal, dos programas de televisão para os horários estipulados. Era apresentada na TV antes de todo programa, com uma voz padrão falando: "Programa liberado pela Censura Federal para este horário". No caso, o balé O Lago dos Cisnes, em 1985, liberado para censura livre.
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011
Fragmentação acadêmica ajudou a não preverem a crise de 2008?
Por que a academia não conseguiu prever a crise econômica de 2008? [P.S. - "prevista" para algum momento, a crise foi por vários anos, na forma de "estourará uma bolha em algum momento" - veja os comentários após o fim do texto] Uma análise do economista Raghuram Rajan, da Universidade de Chicago, publicada no Valor Econômico de hoje, diz que os acadêmicos tinham em mãos instrumentos suficientes para isso:
A primeira (eu diria, na verdade, a superespecialização aliada à fragmentação) é um mal geral da academia - falei sobre ela no primeiro post deste blog - e as outras duas articulam-se com ela na argumentação do economista. Ele dá detalhes sobre como funciona:
Aprofundar o conhecimento é bom, o conhecimento dos especialistas é extremamente útil e necessário - mas há que se cuidar para não perder a visão do todo. Senão, acontecerá como na fábula hindu dos cegos diante de um elefante: um pegou na tromba e achou que se tratasse de uma cobra; outro pegou na perna e concluiu que era uma árvore; outro tocou na causa e disse que era uma corda; e assim por diante.
Não que isso seja necessariamente algo a se evitar - afinal, em grande parte das vezes a abordagem pelas partes que torna o assunto administrável e tem resultados extremamene prolíficos -; o problema é quando essas partes não conversam entre si. Aí não temos apenas especialização, mas fragmentação.
E claro que tudo isso é também apenas um pedaço do elefante - as razões para a crise e para que não tenha sido prevista são múltiplas -, mas acho que ajuda bastante na difícil tarefa de abordar o todo o máximo possivel.
"Não é verdade que nós acadêmicos não tínhamos modelos aplicáveis para explicar o acontecido. Se você acreditar que a crise foi provocada por falta de liquidez, tínhamos modelos de sobra analisando a escassez de liquidez e seus efeitos nas instituições financeiras. Se você acreditar que a culpa foi de banqueiros gananciosos e investidores descuidados, confiantes na promessa de resgates governamentais, ou de um mercado que enlouqueceu com a exuberância irracional, também havíamos estudado tudo isso, detalhadamente."Por que, então? Rajan conclui: "Três fatores explicam nosso fracasso coletivo: especialização, a dificuldade de se fazer previsões e o descolamento entre boa parte da profissão e o mundo real."
A primeira (eu diria, na verdade, a superespecialização aliada à fragmentação) é um mal geral da academia - falei sobre ela no primeiro post deste blog - e as outras duas articulam-se com ela na argumentação do economista. Ele dá detalhes sobre como funciona:
"Assim como a medicina, a economia tornou-se altamente compartimentalizada - os macroeconomistas normalmente não prestam atenção ao que os economistas financeiros ou economistas do setor imobiliário estudam e vice-versa. Para ver a crise chegando seria necessário alguém que conhecesse todas essas áreas- da mesma forma que é necessário um clínico geral para reconhecer alguma doença exótica. Como a profissão recompensa apenas análises cuidadosas e bem fundamentadas, mas necessariamente restritas, poucos economistas tentam atravessar subcampos."Já o problema da dificuldade em se fazer previsões (o segundo da listra tríplice de Rajan) está ligado à tendência ao imediatismo, às previsões de curto prazo. "Os poucos benefícios profissionais recompensando a amplitude das análises, aliados à imprecisão e risco de reputação associadas às previsões, desmotivam a maioria dos acadêmicos", diz ele.
Aprofundar o conhecimento é bom, o conhecimento dos especialistas é extremamente útil e necessário - mas há que se cuidar para não perder a visão do todo. Senão, acontecerá como na fábula hindu dos cegos diante de um elefante: um pegou na tromba e achou que se tratasse de uma cobra; outro pegou na perna e concluiu que era uma árvore; outro tocou na causa e disse que era uma corda; e assim por diante.
Não que isso seja necessariamente algo a se evitar - afinal, em grande parte das vezes a abordagem pelas partes que torna o assunto administrável e tem resultados extremamene prolíficos -; o problema é quando essas partes não conversam entre si. Aí não temos apenas especialização, mas fragmentação.
E claro que tudo isso é também apenas um pedaço do elefante - as razões para a crise e para que não tenha sido prevista são múltiplas -, mas acho que ajuda bastante na difícil tarefa de abordar o todo o máximo possivel.
Cara, cadê meus super-heróis??
Eis um teste para você. Considere uma historinha em quadrinhos de mocinhos e vilões. Um dos personagens, para alcançar seus objetivos, realiza interrogatórios sob tortura, faz ataques preventivos e planeja assassinatos seletivos para eliminar seus adversários. Pergunta-se: esse personagem é o mocinho ou o vilão?
Se você disse "mocinho", está desatualizado. Quem fez isso foi Scott Summers, o Ciclope, o atual líder dos X-Men, uma equipe de... super-heróis. Os X-Men são os paladinos da comunidade dos mutantes, pessoas que, por causa de mutações genéticas, adquiriram capacidades incomuns que podem ser tanto superpoderes extraordinários ou maldições terríveis. No universo ficcional, os humanos os "temem e odeiam" e as histórias giram quase todas em torno do conflito entre humanos e mutantes. Os X-Men sempre tentaram provar que ambos podem conviver pacificamente.
Recentemente, os argumentistas da Marvel reduziram os mutantes do seu universo ficcional de milhões para apenas 198, uma megaversão do que Janete Clair fez na novela Água Viva em 1980 (ela fez explodir um shopping-center para eliminar a maioria dos personagens, cujo número havia se tornado quase inadministrável). Desde então, os X-Men estão numa espécie de "estado de guerra" nos quais os fins estão cada vez mais tendendo a justificar os meios. Não por acaso, o arquiinimigo do grupo, Eric Magnus Lensheer, ou Magneto, apareceu no seu refúgio na última edição lançada no Brasil e confessou ter admiração pelo que a liderança de Scott tem conseguido.
A metáfora com conflitos raciais e opressões contra minorias sempre foi evidente nesse pano-de-fundo humanos x mutantes das histórias dos X-Men. A partir de 1975, começaram a aparecer na equipe membros de inúmeras nacionalidades e comunidades - um camponês russo, uma afro-americana, um irlandês, um índio norte-americano, uma judia, e até um brasileiro, Roberto da Costa. Mas parece que agora a metáfora é outra. Qualquer semelhança da descrição no parágrafo anterior com as tentativas do presidente estadunidense George W. Bush de legitimar os interrogatórios sob tortura e os ataques preventivos nos EUA pós-11 de setembro é coincidência só para quem quiser.
Sangue nu
Agora, uma outra dimensão do fenômeno. A violência aparece em desenhos animados e quadrinhos desde o início do século XX, mas praticamente sempre sem sangue visível. Bem, veja esses quadrinhos de histórias dos X-Men de 1983:
Ataques físicos violentos, mas visualmente assépticos, não é? Nada de sangue ou carne dilacerada à vista. Agora veja, estas, recentes:
Pois é. De lá para cá, a violência nas HQs de super-heróis foi se tornando cada vez mais detalhista - sangue epirrando, cadáveres de olhos abertos, membros decepados. Os desenhos computadorizados deram a tudo um realismo cada vez maior.
Além disso, antigamente os heróis quase sempre lutavam com seus superpoderes ou com as próprias mãos. Nos últimos anos, começaram a multiplicar-se os que usam arsenais de armas pesadas à la Rambo. Sem falar que, nas priscas eras, o vilão jamais conseguia explodir o metrô ou o prédio; agora os genocídios são apenas um elemento a mais na trama (no início deste texto, uma explosão mata centenas de inocentes numa praça, diante dos heróis impotentes - publicada originalmente em X-Force 13 em 2009).
Ao leitor atento de quadrinhos, isto parece remeter à grande quebra de paradigma que foi "O cavaleiro das trevas", que reformulou o personagem Batman, tornando-o bem mais sombrio e interessante. Mas não estou falando de reformulações nesse nível. Não houve nada parecido com Scott Summers. Não há continuidade narrativa entre o Batman original e o do Cavaleiro das Trevas; a linha narrativa sofreu um "reboot". Isso não aconteceu com os X-Men. Simplesmente o herói que era referência por suas virtudes morais e éticas passou a agir de outra maneira, sob a pressão das circunstâncias.
Em outras eras, ele lançaria mão do famoso "sempre há outra solução" e no final venceria sem cair na tentação de se tornar igual a seus inimigos. Mas estamos numa era nova. Nas aventuras do grupo X-Force, a partir de 2008, em X-Men Extra (há duas séries dos X-Men nos quadrinhos brasileiros, X-Men e X-Men Extra) ele monta às escondidas planos de assassinatos seletivos de velhos inimigos antes que eles resolvam agir e junta uma equipe de alguns x-men para executá-la. Sua justificativa é a situação acuada extrema dos poucos mutantes que restaram, sob risco de extinção. Um dos números motra Scott orientando a tortura de um vilão para obter informações.
"Os X-Men não matam" era um bordão até os anos 1990. Já no início daquela década, porém, um deles - justo o de alma mais nobre, o russo Piotr Rasputin, o Colossus - matou um vilão a sangue-frio, esmagando seu pescoço com suas mãos superfortes, escandalizado com a matança de que o dito tinha participado numa comunidade de mutantes renegados.
É evidente, pelo estilo dos desenhos e das histórias, que a idade do público-alvo desses quadrinhos aumentou um tanto nos últimos 20 anos. Mas também é claro que ainda são jovens. Não admira que gente como Michael Moore saia perguntando "Cara, cadê o meu país?". O que está acontecendo com os Estados Unidos?
Se você disse "mocinho", está desatualizado. Quem fez isso foi Scott Summers, o Ciclope, o atual líder dos X-Men, uma equipe de... super-heróis. Os X-Men são os paladinos da comunidade dos mutantes, pessoas que, por causa de mutações genéticas, adquiriram capacidades incomuns que podem ser tanto superpoderes extraordinários ou maldições terríveis. No universo ficcional, os humanos os "temem e odeiam" e as histórias giram quase todas em torno do conflito entre humanos e mutantes. Os X-Men sempre tentaram provar que ambos podem conviver pacificamente.
Recentemente, os argumentistas da Marvel reduziram os mutantes do seu universo ficcional de milhões para apenas 198, uma megaversão do que Janete Clair fez na novela Água Viva em 1980 (ela fez explodir um shopping-center para eliminar a maioria dos personagens, cujo número havia se tornado quase inadministrável). Desde então, os X-Men estão numa espécie de "estado de guerra" nos quais os fins estão cada vez mais tendendo a justificar os meios. Não por acaso, o arquiinimigo do grupo, Eric Magnus Lensheer, ou Magneto, apareceu no seu refúgio na última edição lançada no Brasil e confessou ter admiração pelo que a liderança de Scott tem conseguido.
A metáfora com conflitos raciais e opressões contra minorias sempre foi evidente nesse pano-de-fundo humanos x mutantes das histórias dos X-Men. A partir de 1975, começaram a aparecer na equipe membros de inúmeras nacionalidades e comunidades - um camponês russo, uma afro-americana, um irlandês, um índio norte-americano, uma judia, e até um brasileiro, Roberto da Costa. Mas parece que agora a metáfora é outra. Qualquer semelhança da descrição no parágrafo anterior com as tentativas do presidente estadunidense George W. Bush de legitimar os interrogatórios sob tortura e os ataques preventivos nos EUA pós-11 de setembro é coincidência só para quem quiser.
Sangue nu
Agora, uma outra dimensão do fenômeno. A violência aparece em desenhos animados e quadrinhos desde o início do século XX, mas praticamente sempre sem sangue visível. Bem, veja esses quadrinhos de histórias dos X-Men de 1983:
Quadrinhos publicados originalmente em Uncanny X-Men 173 (1983), mostrando uma luta entre Wolverine e o Samurai de Prata.
Ataques físicos violentos, mas visualmente assépticos, não é? Nada de sangue ou carne dilacerada à vista. Agora veja, estas, recentes:
Quadrinhos publicados originalmente em: Cable 6 (2008) (acima, à esquerda); Cable 5 (2008) (acima, à direita); X-Force 17 (2009) (abaixo - o mesmo Wolverine dos quadrinhos anteriores...).
Pois é. De lá para cá, a violência nas HQs de super-heróis foi se tornando cada vez mais detalhista - sangue epirrando, cadáveres de olhos abertos, membros decepados. Os desenhos computadorizados deram a tudo um realismo cada vez maior.
Além disso, antigamente os heróis quase sempre lutavam com seus superpoderes ou com as próprias mãos. Nos últimos anos, começaram a multiplicar-se os que usam arsenais de armas pesadas à la Rambo. Sem falar que, nas priscas eras, o vilão jamais conseguia explodir o metrô ou o prédio; agora os genocídios são apenas um elemento a mais na trama (no início deste texto, uma explosão mata centenas de inocentes numa praça, diante dos heróis impotentes - publicada originalmente em X-Force 13 em 2009).
Ao leitor atento de quadrinhos, isto parece remeter à grande quebra de paradigma que foi "O cavaleiro das trevas", que reformulou o personagem Batman, tornando-o bem mais sombrio e interessante. Mas não estou falando de reformulações nesse nível. Não houve nada parecido com Scott Summers. Não há continuidade narrativa entre o Batman original e o do Cavaleiro das Trevas; a linha narrativa sofreu um "reboot". Isso não aconteceu com os X-Men. Simplesmente o herói que era referência por suas virtudes morais e éticas passou a agir de outra maneira, sob a pressão das circunstâncias.
Em outras eras, ele lançaria mão do famoso "sempre há outra solução" e no final venceria sem cair na tentação de se tornar igual a seus inimigos. Mas estamos numa era nova. Nas aventuras do grupo X-Force, a partir de 2008, em X-Men Extra (há duas séries dos X-Men nos quadrinhos brasileiros, X-Men e X-Men Extra) ele monta às escondidas planos de assassinatos seletivos de velhos inimigos antes que eles resolvam agir e junta uma equipe de alguns x-men para executá-la. Sua justificativa é a situação acuada extrema dos poucos mutantes que restaram, sob risco de extinção. Um dos números motra Scott orientando a tortura de um vilão para obter informações.
"Os X-Men não matam" era um bordão até os anos 1990. Já no início daquela década, porém, um deles - justo o de alma mais nobre, o russo Piotr Rasputin, o Colossus - matou um vilão a sangue-frio, esmagando seu pescoço com suas mãos superfortes, escandalizado com a matança de que o dito tinha participado numa comunidade de mutantes renegados.
É evidente, pelo estilo dos desenhos e das histórias, que a idade do público-alvo desses quadrinhos aumentou um tanto nos últimos 20 anos. Mas também é claro que ainda são jovens. Não admira que gente como Michael Moore saia perguntando "Cara, cadê o meu país?". O que está acontecendo com os Estados Unidos?
P.S. - Veja também: Super-heróis de hoje têm influência negativa em meninos, diz estudo (BBC Brasil, 18/02/2010)
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