Saí chocado do filme "Cisne Negro". Nunca antes uma película de cinema havia me causado tal efeito. Passei rapidamente numa livraria depois; ao sair, ainda estava arfando. Demorei para voltar daquele estranho universo paralelo ao qual fui catapultado.
Seguindo a dinâmica das grandes óperas e peças de dança, o filme começou tranquilo, pianissimo, mas foi crescendo, crescendo, envolvendo, envolvendo, até chegar num clímax fortissimo e definitivo, um grand finale inesquecível.
A metáfora tem múltiplas dimensões. A própria vida da personagem principal, a bailarina Nina Sayers, interpretada intensamente por Nathalie Portman, assemelha-se à inspiração da história, o balé "O lago dos cisnes", de Tchaikovsky. O crescendo do filme acompanha também a "libertação interior" da personagem. Inicialmente uma personalidade contida e obcecada com a técnica, vai libertando paulatinamente o seu "cisne negro" - o lado da paixão intensa, que vem das entranhas, que mantinha cuidadosamente oculto em seu interior.
É também uma contraposição entre a linha estritamente técnica de interpretação de obras de arte e a linha "visceral", que usa a técnica como instrumento para conseguir expressar a sensibilidade e alcançar a expressão mais profunda do eu do artista - e atingir sensibilidades igualmente profundas dentro do espectador.
Que, salta aos olhos, é a linha do diretor Darren Aronofsky e dos quatro roteiristas (é produção independente). Quem assiste nas cadeiras do cinema vai sendo envolvido até os ossos por uma articulação mestra entre doses crescentes de suspense e de mistura entre o real e o onírico, que acompanham a contínua "descida ao abismo" do lado negro da alma, e uma cuidadosa estratégia de identificação espectador-personagem. O efeito é explosivo, arrepiante.
Aliado a isso, grandes interpretações. A atuação radical de Nathalie Portman é distante de tudo o que tem feito ultimamente. Outras duas atrizes, Mila Kunis (Lily) e Barbara Hershey (a mãe de Nina), fazem com Nathalie uma envolvente "dança" de dominação, manipulação e libertação entre três personagens intensos. Wynona Ryder (Beth), que está surpreendente, completa o quarteto feminino; sua personagem aparece pouco, mas na quantidade justa para marcar todo o espaço da obra - talvez porque encarne um medo permanente de Nina, contra o qual ela luta o tempo todo, fazendo Beth estar simbolicamente presente e atuante na maior parte do filme. Em meio ao ambiente de ciumeira do meio artístico, o processo de transição de Nina é múltiplo: metaforizam-se mutuamente, como numa rede de metassignificados, o desabrochar sexual, o conflito com as amarras da mãe, o amadurecimento artístico - mas, principalmente, a luta cada vez mais desesperada contra si mesma.
Mas o resultado pleno jamais seria alcançado sem o modo genial como foi utilizada a trilha sonora de Tchaikovsky. Escritores e compositores russos do século XIX e início do XX - Dostoievsky, Tchaikovsky, Rachmaninoff - possuem uma carga de paixão em suas obras de uma intensidade difícil de se igualar. Acessar essa caixa de pandora é que é uma arte à parte. Certas obras de Tchaikovsky pertencem àquela classe que possui um potencial de efeito mágico que raramente é alcançado pelas execuções, seja no palco, seja em ambientações em filmes de cinema. São músicas carregadas de sentimento, mas que precisam de alguém que as faça "chegar lá". Quando isso acontece, o espectador entra em outra dimensão.
Demorei para voltar.
Uma prima, Regina Belisário, está impressionada com este relato.Ela assistiu a esse filme hoje e leu o que está escrito aqui. Sentiu o filme intensamente nessas linhas.
ResponderExcluirÉ muito bom quando um filme mexe com a gente assim.
ResponderExcluirIsso me aconteceu muito poucas vezes, com poucos filmes.
O Cisne Negro não me deixou tão pilhada como vc ficou, mas com certeza é um filme marcante, do tipo que a gente não esquece fácil. Aliás, algumas cenas eu até já queria ter esquecido, porque me deixaram muito angustiadas enquanto assisti (unhas, sangue, afe!).
Parabéns pelo post no seu blog.
É, ele tem umas cenas fortes, mesmo. Acho que foi a música que me fez ficar daquele jeito - ou melhor, a combinação explosiva "música do Tchaikovsky + a tempestade do filme em si".
ResponderExcluirEu não falei nada do quinto personagem importante, o diretor do balé, que é um nexo fundamental na amarração entre algumas das dimensões da trama de que falei acima. Na verdade, foi porque não vi jeito de falar dele sem entregar demais a história do filme...
Depois de escrever esse post, encontrei opiniões de todos os tipos sobre o filme. Houve as que acharam legal mas nenhum "oh, meu Deus". Houve uma que disse que "odiou com paixão". Um cara ficou tão escandalizado com a cena de masturbação que escreveu uma crítica indignada falando quase só nisso. Eu não achei nada de mais, estava totalmene contextualizada e não foi nada muito forte. E houve gente que se reconheceu nos meus comentários, como a Regina acima (e a Tatiana Belisário, no Facebook). Interessante.