sábado, 19 de fevereiro de 2011

Conferências com longos coffee-breaks, por favor

Para que viajar até o fim do mundo para ver alguém importante falar numa conferência se hoje pode-se ouvi-lo pela Internet ou ler o que ele tem a dizer em seus artigos e livros? Foi esta a pergunta que me fazia cada vez mais desde meu primeiro congresso, em 1994, em Caxambu, MG, quando ainda fazia mestrado em Física na Unicamp.

Demorei para compreender. E demorei porque a resposta é algo que a sociedade brasileira ainda não absorveu muito bem.

O melhor de seminários e conferências não são as palestras em si, mas a interação tête-à-tête que se dá entre as pessoas nos intervalos, nos almoços e nos corredores de hotéis. Isso não pode ser substituído pela Internet. No entanto, já fui em várias conferências no Brasil nas quais quase não havia tempo para isso - ou então os atrasos e os desrespeitos dos palestrantes pelo tempo dos colegas que falariam em seguida obrigou os organizadores a deixar apenas uns 5 minutos para o cafezinho.

É nos encontros pessoais que se faz contatos. A ciência é uma atividade social, como qualquer atividade humana. Só funciona tendo como lastro redes sociais ativas entre pesquisadores, estudantes, veteranos "monstros sagrados" e, por que não, curiosos. E o contato requer presença humana. As redes sociais e e-mails só o conseguem até um certo ponto. E não podem nem de perto conseguir o que faz um papo presencial, olhos nos olhos, tendo acesso a toda a linguagem não-verbal do interlocutor e ao seu fluxo de ideias em tempo real - a dinâmica é muitíssimo mais rica.

Ademais, é preciso "circulação". Sair da toca, circular, interagir com gente de outros países, outras culturas, outras áreas. Europeus e estadunidenses fazem isso o tempo todo. Nós, muito menos. Enquanto for assim, continuaremos culturalmente a reboque e defasados dos grandes produtores de movimentos culturais do mundo, sempre aderindo a modas criadas em outros contextos com anos ou décadas de atraso (com raríssimas exceções).


Dois bons exemplos

Em um minicurso voltado a pós-graduandos que aconteceu em janeiro no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), perto de Campinas, SP, a organização fez questão de colocar intervalos - ou coffee-breaks - de meia hora entre cada bloco de palestras. O resultado foi desproporcionalmente prolífico. Comentei com alguns organizadores, no final, minha agradável surpresa com o tamanho dos coffee-breaks e do efeito que eles produziram. Ao que me responderam que fora uma escolha consciente, proposital da direção do laboratório, e recuraram-se a permitir que o cronograma apertado justificasse diminuir o seu tamanho.

Foi uma sorte muito grande eles terem optado por isso, pois a multidisciplinaridade do evento me surpreendeu. Isso, apesar de eu estar há meses escrevendo textos de divulgação sobre as pesquisas do laboratório para seu site. Imaginava trabalhos sobre física ou, estourando, físico-química ou bioquímica. Mas apareceram palestras sobre mudanças climáticas, biologia e até paleontologia. Num caso desses, o coffee-break é mais fundamental ainda, pois sem ele o evento seria apenas uma superposição de temas diferentes, sem articulação entre eles. São os encontros pessoais nos intervalos que fazem com que as pessoas de diferentes áreas realmente interajam, aprendam umas com as outras, enriqueçam-se com ideias de gente de áreas diferentes que vêem os trabalhos com outra perspectiva, levantando outras questões.

Outro caso semelhante aconteceu em uma conferência em agosto do ano passado em Itatiba, no interior de São Paulo, por ocasião dos 350 anos da Royal Society, do Reino Unido. A secular entidade britânica comemorou com eventos por todo o mundo. A proposta em Itatiba foi justamente reunir cientistas de várias áreas distintas - física, biologia, ciências do ambiente, geologia, ciências humanas.

Para que novas ideias emergissem da interação e do contato entre pessoas com cabeças muito diferentes. Por essa razão, as palestras deveriam ser compreensíveis para não-especialistas. Eram pesquisadores jovens, mas já com reconhecimento pela qualidade de seus trabalhos, para que fossem mais abertos a novas ideias e tivessem "a vida pela frente" para transformar sementes diferentes em frutos originais. A foto do início deste texto mostra uma das palestras, de Edson Amaro Júnior, sobre plasticidade cerebral (capacidade do cérebro de estabelecer espontaneamente novas conexões entre neurônios para o aprendizado e para substituir lesões).

Na verdade, essa interação planejada entre alienígenas não funcionou muito bem durante as palestras - pessoas de outras áreas pareciam muito tímidas para fazer perguntas. Mas elas se soltavam nos intervalos e então esse encontro teve os coffee-breaks mais extraordinários de que já participei. Sentei-me à mesa, nos almoços, com pessoas de tudo que é área, perguntava-lhes o que me dava na telha, satisfazendo minha curiosidade, e vi pessoas botando para fora ideias que tinham sobre os mais diversos assuntos.

Coffee-break entre dois blocos de seminários em Itatiba, na Fazenda Dona Carolina. Foi nessas conversas animadas e também nos almoços e nas dependências do hotel-fazenda que o evento mostrou suas faces mais interessantes e prolíficas.

Os dois casos - Itatiba e LNLS - foram também exemplos interessantes de circulação. O Laboratório Síncrotron já faz naturalmente colaborações científicas internacionais numerosas - tenho escrito sobre trabalhos com colaboradores da Itália, Suécia, Argentina, República Tcheca; e o próprio diretor-científico da instituição, Yves Petroff, é um francês vindo do laboratório síncrotron de Grenoble. Os esforços do LNLS para explorar esse potencial de circulação começaram recentemente a serem premiados com estudantes estrangeiros se interessando em vir fazer pós-graduação no Brasil - uma inversão surpreendente do fluxo que imaginamos ser o "normal".

Em compensação, quando fui a uma conferência de Física em Viena, em 1997, quando ainda era pesquisador - mas não tinha nenhuma experiência em como aproveitar tais encontros - voltei com uma sensação de tempo perdido. Havia gente de tudo que é país, da Hungria ao Uzbequistão. Mas simplesmente não aproveitei os intervalos, que havia de sobra, porque achava que o principal do evento eram só as palestras e o resto era "tempo livre" para fazer turismo ou estudar qualquer coisa; estava ali para "mostrar serviço", não para ficar papeando pelos cantos... Ledo engano.

Ninguém tinha me dito o que eu deveria fazer em Viena. Portanto, agora digo eu. Organizadores brasileiros: conferências com coffee-breaks generosos, por favor. Palestrantes: não "comam" o tempo dos palestrantes seguintes. É o mínimo. Participantes: "devorem" os coffee-breaks; tratem os encontros fortuitos em corredores de hoteis como oportunidades de ouro. E depois gerenciem os contatos que conseguiram, para que eles cresçam e formem uma rede, e não se desfaçam em pouco tempo.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Divagações entre Tom e Chico

Agora, um post sobre música! Peço desculpas aos que não tocam algum instrumento, que não poderão apreciar uma parte deste texto - mas espero que o que sobre não fique tão desinteressante.

De qualquer forma, eu mesmo tenho um conhecimento no máximo rudimentar de teoria musical e o que vou dizer abaixo parte mais da percepção do que ouço. O caso é que os mistérios que me aparecem nas composições de Chico Buarque e Tom Jobim, e que não consigo explicar, me surpreendem e me encantam. E às vezes fazem um "bichinho" peculiar percorrer fugaz e deliciosamente algum ponto das vísceras ou da espinha dorsal. Gostaria de compartilhar um pouco dessas experiências com outros semianalfabetos teóricos musicais.

Seguinte. Um amigo me disse certa vez que a diferença entre a música do Tom Jobim e a do Chico Buarque é que a do Tom é muito complicada, mas soa como algo natural, enquanto a do Chico é muito complicada e soa como algo complicadíssimo.

Claro que estávamos falando de apenas parte da obra dos dois. Mas, de fato. Pegue "Eu sei que vou te amar". Qualquer pessoa minimamente afinada que a conheça pode cantá-la com facilidade. Acontece que a segunda nota cai na sétima maior do acorde...! Certo, as duas primeiras notas formam uma terça maior - coisa fácil de fazer. Só que o ambiente harmônico está na cabeça da pessoa (e aí a sétima maior soa como sétima maior, mesmo), e além disso ela consegue igualmente cantar o que vem em seguida.

Já a "Garota de Ipanema", com aquela melodia inocente, passeia pelas dissonâncias dos acordes. Começa com uma sucessão de nonas, sétimas maiores e sextas e só quando entra o acorde seguinte é que surgem as notas "comuns" (fundamentais, terças e quintas), que costumam entrar nas músicas mais tradicionais. O caso é que, para ouvidos não treinados, é imperceptível que haja algo incomum no início dessa canção. Isso me parece surpreendente.

Por outro lado, qualquer um percebe que há algo muito incomum em certas melodias do Chico, especialmente dos últimos discos. Raros são os que cantam as primeiras notas de "Gota d'água" tal como estão na partitura. Quem nunca viu a partitura, dê uma olhada; se não for músico profissional, provavelmente terá uma surpresa (quem descobriu isso para mim foi Antonio Soares Diniz):

Fonte: Chico Buarque - Uma seleção de partituras. Compilação The Best Brasseller - Abdalan. http://www.slideshare.net/edgararruda/partituras-3


Isso é bossa-nova, isso é muito natural...

É possível que teóricos da música tenham resposta na ponta da língua a todas essas observações. Mas delicio-me "descobrindo" essas coisinhas extraordinárias. Afinal, "só privilegiados" etc... (A propósito, falo aqui em "funções" de acordes, mas no sentido do efeito que causam na percepção, não de sua função formal.)

Bem, nada disso significa que Tom é pior que Chico ou Chico pior que Tom. São apenas estilos diferentes. Mas há que se convir que forjar uma música cheia de dissonâncias que soe como alto natural é uma "arte à parte".

Como isso acontece com a música do Tom? Do alto do meu desconhecimento, quis buscar a explicação em um fenômeno interessante: na primeira vez em que fui "tirar" a "Garota de Ipanema" no violão, demorei um pouco para sacar o tom, com uma ou duas tentativas erradas - seu início parecia uma música composta num tom, mas com acordes de outro. Também já presenciei um músico "caçar" rapidamente o acorde inicial de "Eu sei que vou te amar" quando tentou tocá-la pela primeira vez num piano.

É como se o Tom, nessas músicas, escolhesse judiciosamente as notas e os intervalos (as distâncias entre duas notas consecutivas) de tal modo que tivessem entre si uma relação que de alguma forma se assemelhasse com o que se ouve em uma "música mais natural". De fato, em Tom, apesar de a melodia se sustentar em dissonâncias, os intervalos em si não são nada escabroso. Já Chico põe vários saltos e modulações muito difíceis nas suas músicas.

No entanto, não deve ser bem por aí, pois a aparente naturalidade da música jobiniana permanece mesmo em certas armadilhas "cruéis" das suas canções - sim, elas existem. A segunda parte de "Garota de Ipanema" - "Ah, por que tudo é tão triste..." - é uma grande puxada de tapete para quem não tem experiência com música. Mesmo assim, ela não soa "estranha"! Então há mais por detrás da estratégia de composição do Tom. Talvez os teóricos tenham uma resposta até com enfado de tão óbvia, mas esse mistério para mim é algo fascinante.


Um "piano", um violão, este amor, uma canção...

Claro que há muitas razões bastante evidentes para as diferenças de estilos de Chico e Tom. A começar pelo fato de Chico ter desenvolvido sua musicalidade sobre um violão e o Tom não largava o piano (ainda que haja vídeos mais ou menos recentes de Chico compondo no teclado). Sim, dá para perceber isso ouvindo - há músicas que parecem nitidamente terem sido compostas por pianistas e outras por violonistas. Quem já tentou tocar no piano a melodia de "Rosa", do Pixinguinha, deverá compreender rapidamente do que falo. A mão desliza "redonda" pelas teclas enquanto a linda melodia emerge do instrumento.

Por contraste, tente fazer o mesmo com "Quem tem a viola", sucesso do quarteto Boca Livre. Os intervalos entre as notas são muito grandes, a mão é jogada implacavelmente para lá e para cá. Mas agora tente improvisar um solo de ambas em um violão. Sugiro experimentar a música do Boca em mi. Veja como sai "redondo", os dedos deslizando pelas cordas, a mão esquerda quase só se mexe para mudar de acorde. Composição de violonista.

Outro motivo óbvio para as diferenças é a história. Tom Jobim e João Gilberto fundaram um esquema específico de estrutura harmônica e de uso de dissonâncias, absorvido rapidamente pelos outros bossanovistas (Carlos Lyra, Roberto Menescal & cia.) e trasnferido para a geração seguinte, a geração da MPB dos famosos Festivais da Record (Chico, Edu, Toquinho, etc., e, na década seguinte, João Bosco e Djavan). Tom e João abriram portas que seus sucessores exploraram à farta.

Alguns desenvolveram a partir daí esquemas harmônicos próprios, como João Bosco e Chico Buarque. Ambos começaram com algo próximo do que os bossanovistas faziam, mas foram desenvolvendo estilos muito próprios de harmonia e, em certo ponto de suas carreiras, deram uma guinada sensível. Em Chico, aconteceu principalmente a partir de meados dos anos 1980. Foi quando começaram a aparecer melodias realmente fora dos seus padrões anteriores, que foram se tornando cada vez mais numerosas. Claro que Tom também deu suas guinadas. Quem acha que sua obra se resume à bossa-nova deveria ouvir seus discos dos anos 1970, como "Urubu" e "Matita-Perê". Assim, sendo musicalmente um "filho de Tom & João", e com talento suficiente para inovar a partir do que já tinha, Chico necessariamente deveria divergir de seus padrinhos.


Ah, as inversões do Chico...!

Não me sinto à vontade em falar sobre harmonias buarquianas sem mencionar suas maravilhosas inversões de acordes, então permitam-me uma pequena digressão. Inversão é quando você inverte a sequência natural das notas de um acorde (fundamental, terceiro e quinto graus, no caso de um acorde maior). No violão, é comum manifestar de forma particularmente bela com as inversões no baixo. O Chico usa isso eximiamente, explorou funções novas para as inversões, encheu suas músicas delas - elas fazem parte do que chamei acima de "esquema específico de estrutura harmônica". Tem predileção por fazer o baixo descrever longas escalas de notas em sequência dialogando com o resto da música enquanto a melodia e os acordes vão para lá e para cá - um exemplo particularmente brilhante disso é "Folhetim". Dá para perceber bem se tentar tocá-la no violão.

Chico criou funções e efeitos surpreendentes em especial para o acorde invertido com o sétimo grau no baixo (como G/F, D/C etc. - aquele mesmo com que começa "Águas de Março", do Tom). Em "Samba e amor", aparece um acorde desses no meio da música que quase causa um choque, além de uma sensação indescritível que percorre a espinha. Vem bem no fim do verso "E tenho muito sono de manhã" - e nos correspondentes nas outras estrofes. Fica bem evidente na versão do Caetano Veloso com só voz e violão, no seu disco "Qualquer coisa".

Tom também tem seus momentos de gênio nas escolhas de inversões e dissonâncias, como no acorde inicial de "Águas de Março", com a mesma inversão com sétimo grau no baixo cara ao Chico (mas com uma função bem diferente das que Chico costuma escolher), e no de "Corcovado", que tem o baixo na fundamental mas usa uma inversão belíssima (natural no violão, mas não muito no piano).

Enfim, continuo a divagar e a encontrar surpresas nas músicas desses dois; o que há de mais fascinante que um mistério não resolvido?

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Socorro! Meus amigos - e o mundo - estão pirando!

Algo muito - muito! - errado está acontecendo com nossa sociedade.

No início, eu achava que o problema era comigo. Grandes amigos com quem eu tinha bastante intimidade começaram a ter colapsos nervosos, casamentos estourados e coisas do tipo. Troços feios. Uma teve uma crise de depressão e ficou magra como um palito. Outra teve duas crises de pânico aparentemente sem motivo algum. Ambas resolveram com tratamentos psiquiátricos. Uma terceira teve o casamento rompido e anos depois teve uma crise nervosa tão somatizada que ficou um mês prostrada na cama com a saúde em pandarecos. Outra teve um divórcio litigioso - em vários momentos eu achei que ela ia pirar também - e crianças pequenas testemunharam diálogos de cortar o coração. Recentemente, outro estranho episódio parecendo um colapso nervoso que iniciou outro divórcio. Isso sem falar em TDA's e coisas mais leves.

Como eu só via acontecer isso com pessoas de quem gosto muito, sobreveio uma desconcertante impressão de que o meu perfil atraía para o meu círculo mais íntimo pessoas com potencial de pirar na batatinha.

Mas logo percebi que o caso era outro: essas pessoas eram aquelas com as quais eu tinha intimidade suficiente para ter acesso detalhado a esse tipo de informação. Quando falei disso com uma delas, respondeu-me que avaliava que, nas Ciências Sociais da Unicamp, entre estudantes e professores, cerca de 50% tomavam remédio psiquiátrico por algum motivo.

Cinquenta por cento! Isso é uma completa maluquice! Que espécie de sociedade é esta que tem como consequência tamanho grau de violência emocional?


Admirável mundo louco

E por que isso acontece? Esta é a pergunta de um milhão de libras esterlinas. Aí inúmeras variáveis se misturam, dançam na minha cabeça, e não vejo muita luz no fim do túnel. Vejo é muita coisa estranha ao redor. Vejo pessoas apressadíssimas com tudo, trabalhando a mil por hora mesmo quando não lhe é exigido. Vejo pessoas - atendentes, secretários - tendo que suportar desaforos o dia todo sem poder reagir à altura. Uma delas, que eu conhecia, caiu em depressão, ficou dias em off e nesse período pareceu no departamento que toda a tripulação de um navio desapareceu, tamanho foi o caos decorrente.

Vejo a fronteira entre o trabalho e o lazer borrada cada vez mais pelos meios de comunicação eletrônicos. O cara responde e-mails do serviço em qualquer horário, inclusive por celular ou iPad ou sei lá o quê enquanto janta com a filha. Eu senti tamanho desconforto quando usei celular que livrei-me dele. Parecia que eu ficava aceso o tempo todo, não tinha o necessário descanso mental fora do trabalho. Excesso de estado de alerta.

Vou numa lanchonete e há música alta demais, é muito difícil conversar. Sempre há música ou TV alta, a não ser que a conversa das pessoas sobrepuje tudo em decibéis. Não há silêncio. A moçada se defende com papos anódinos, pois é impossível desenvolver argumentos.

Na festa de aniversário de 90 anos de minha tia-avó, aconteceu o cúmulo de eu ter que sair do salão porque meus tímpanos começaram a doer por causa do som altíssimo. E havia gente dançando na frente das caixas de som!!! E ninguém dava a mínima! Achavam normal! Uma prima tentou falar comigo literalmente urrando a um centímetro do meu ouvido com a força que tinha. Única maneira de se fazer ouvir naquela loucura. Impedi-lhe veementemente, pois não penso em dizer adeus a Bach e Tom Jobim tão cedo.

E isso acontece porque a clientela prefere assim. O que é isso, estão querendo substituir a relação social pelo quê, exatamente? Estão fugindo exatamente do quê? Da realidade?


Tudo que é sólido... o que ainda é sólido?

Vejo valores éticos substituídos cada vez mais por valores de mercado. Se esta frase lhe causa estranheza, veja isto. Lembram-se daquelas superchuvas que houve em Florianópolis recentemente? Naquela semana, eu estava lá e fiquei preso na ilha. Todas as estradas bloqueadas. Tive que comprar passagem de avião. Surpresa: para Curitiba, ela havia quadruplicado de preço e chegado a mil reais! Fui para Belo Horizonte, pela metade do preço. Isso, para todas as companhias aéreas. Então, já que as pessoas estão morrendo e precisam desesperadamente fugir, enfia-se-lhes a faca até rasgar o hipotálamo? Não admira que alguns intelectuais qualifiquem nosso sistema capitalista de "sociopata".

Vejo a segurança dos padrões desaparecer sob nossos pés - casamentos, emprego fixo, valores - e parece que muita gente não sabe ainda lidar com isso. Com a ética de mercado solta desembestada, o "sistema sociopata" suga o máximo das pessoas, forçando-as a trabalharem em qualquer horário, com intensidade máxima, como máquinas, ignorando sua humanidade e suas emoções. Teremos de volta, num futuro sombrio, a situação grotesca do início da Revolução Industrial? Naquela época, trabalhadores supercarregados ficavam doentes ou morriam. Agora, entram em depressão, destróem casamentos. Em certos países desenvolvidos, crianças saem atirando em seus colegas.

Será que é de tudo isso que as pessoas querem fugir quando se relacionam de forma cada vez mais passiva com a cultura e com a mídia? Não só com relação à TV e a músicas. Depois do Twitter legitimar e consolidar a linguagem telegráfica na Internet (e o Orkut fazer o mesmo com a completa falta de conteúdo - em suas comunidades, ninguém lê o que os outros escrevem, só telegrafam), depois disso, uma certa rede social chamada Blaving prometeu ser um "Twitter com voz". Justificativa: "Falar é mais fácil que escrever". Uma tuiteira particularmente pensante comentou: "Bom lembrar que grunhir é mais fácil que falar".

Variáveis demais, misturadas, desarticuladas, não respondem minha pergunta principal. Só sei que há algo de muito - muito! - errado com nossa sociedade.

P.S. - A figura do início é o cartaz do filme "Koyaanisqatsi". Da língua indígena hopi, falada no sudoeste dos EUA, a palavra pode ser traduzida aproximadamente por "vida fora do equilíbrio, vida se desintegrando, um estado de vida que clama por outro modo de viver". O que aconteceu com esses índios que os levou a cunhar tal termo - que parece faltar a nós, justo a quem parece fazer mais sentido?

P.S. 2 - Alguns links sugeridos por leitores [17/02/2011]:
- Ana Paula Morales: "Depressão, uma dupla noite", de Moysés Floriano Machado-Filho, do CEP.
- Paulo Roxo Barja: "Diagnóstico de deficit de atenção divide especialistas", de Guilherme Genestretti, na Folha de S. Paulo, reproduzido no blog Significantes.
- Roberto Takata: "Depression: epidemic or pseudo-epidemic?", de Derek Summerfield, Institute of Psychiatry, King's College, London, UK.
- Por coincidência, encontrei este, divulgado no Facebook por Marta Kanashiro: "Hechos breves" sobre la mente y la salud mental, publicado no site da Comisión de Ciudadanos por los Derechos Humanos, entidade preocupada em defender os direitos humanos no campo da saúde mental e a difundir informação sobre a legitimidade dos diagnósticos médicos na área, riscos associados e direitos de recusar tratamentos e de procurar alternativas.
- Simone Figueiredo: "Juventude medicada", de Rosely Sayão, no blog da autora.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A literatura africana contando sua história

Tenho lido uns contos e romances africanos. Dos de língua portuguesa, Mia Couto (moçambicano) e José Luandino Vieira (angolano). São textos surpreendentes. Em "Estórias abensonhadas", do Mia Couto (este moço à esquerda), há contos muito bonitos, coalhados de neologismos como o do título. Só para dar um gostinho, vejam como começa "O poente da bandeira":
"Aurorava. O sol dava as cinco. As sombras, neblinubladas, iam espertando na ensonação geral. No topo das árvores, frutificavam os pássaros. Toda madrugada confirma: nada, neste mundo, acontece num súbito. A claridade já muito espontava, como lagarta luzinhenta roendo o miolo da escuridão. As criaturas se vão recortando sob o fundo da inexistência. Neste tempo uterino o mundo é interino. O céu se vai azulando, permoeolhável. Abril: sim, deve ser demasiado abril. Agora, que a aurora já entrou neste escrito, entremos nós no assunto."
E segue-se o conto. Inevitável que esses belos experimentos vocabulares façam um brasileiro se lembrar de Guimarães Rosa - mas o estilo e o conteúdo são muito diferentes. Vários dos textos tratam da brutalidade da guerra e da opressão de policiais e soldados da época do controle português sobre o Moçambique (que durou até 1975). Mas a narrativa é feita de uma forma delicada que se coloca em total contraste com os acontecimentos narrados, realçando-os de uma forma quase desconcertante.


Literatura e história

É comum na literatura africana que os autores ambientem suas narrativas historicamente. Afinal, são obras produzidas em países multiétnicos e politicamente jovens, em busca de suportes históricos que legitimem um sentimento nacional - tarefa complexa, pois as fronteiras atuais jamais existiram antes da colonização européia. O historiador inglês Eric Hobsbawn popularizou o conceito de "construção da nação", feita por meio de referências históricas e culturais, alinhavadas num processo de "construção das tradições" nas quais os Estados-nação modernos embasam sua identidade enquanto "povos". O processo aconteceu no Ocidente a partir de meados do século XVIII. Estaríamos testemunhando, nessa pujança da literatura africana, uma espécie de "construção da nação" hobsbawniana em andamento?

O angolano Luandino (este senhor à esquerda) é particularmente interessante no aspecto histórico, pois ele começou a publicar em 1954, quase sempre com um estilo que hoje resgata percepções e ambientações de tempos idos de seu país - e não parou mais. Em casos assim, a literatura complementa a historiografia transmitindo percepções, o que a ciência histórica dificilmente consegue fazer.

O período coberto por Luandino é o da formação da entidade política "Angola". O ano de 1954 está no fim da época da consolidação dos movimentos de emancipação das colônias francesas e britânicas - três anos depois, Gana tornava-se o primeiro daqueles países a obter a independência. A atividade de Luandino passou então pela grande frustração angolana do iníco dos anos 1960, quando as possessões portuguesas não conseguiram a emancipação, ao contrário de quase todo o resto da África. Atravessou a guerra contra os dominadores que se seguiu a partir de 1960. Testemunhou o abandono português de Angola em 1975, após a Revolução dos Cravos na metrópole, e a subsequente guerra civil sangrenta. Chegou ao fim da guerra em 2002 e segue pelo período de reconstrução adentro.

É a longa e tortuosa história da formação de um país contada sob o ângulo da literatura. Comecei lendo o primeiro livro, “A cidade e a infância”, de contos, e quero ver se continuo cronologicamente para acompanhar isso. Excitante possibilidade!

Em tempo: Este post é um desenvolvimento de um comentário que fiz para outro post da Raquel Cozer no seu blog, que fala da recente e súbito aumento da popularidade dos autores africanos lusófonos no Brasil - mas sem o fenômeno correspondente da literatura brasileira em Portugal e na África.

No comentário, eu citei também Chinua Achebe, nigeriano. Absolutamente fascinante. Qualquer dia falo dele por aqui.

Apresentação (ou: "Pensar com a própria cabeça" repetido três vezes)

"Um míope, obrigado a colocar o objeto mais perto, pode talvez por um exame próximo descobrir o que não viram muito melhores olhos." G. Berkeley, 1710"

Essa convidativa tirada foi posta a público há exatamente trezentos anos pelo filósofo irlandês George Berkeley, para justificar aos leitores e a si mesmo por que ó raios ele, um reles, um mero, se meteria a escrever um pomposo "Tratado sobre os princípios do conhecimento humano" após "tantos homens grandes e extraordinários" se debruçarem sobre assunto tão espinhoso.

Eu tenho 6,5 dioptrias num olho e 7 no outro, e sinto que meus dois hemisférios cerebrais não ficam muito atrás. Sinto-me representado muito bem pelo ilustre setecentista...

Mas alto!, não se trata apenas do estimulante esporte de "discorrer longamente sobre assunto que desconheço" (concordo, Tom Jobim!), mas de reconhecer que todos podemos e devemos ter opiniões sobre assuntos tão vários quanto queiramos, quer nos afetem ou não, da física quântica ao valor do salário mínimo, das letras do Chico à política russa na Tchetchênia. Para isso, basta ter postura crítica e disposição para sair atrás do que lhe interessa. O que significa "pensar com sua própria cabeça".

Ademais, é experimentando o alienígena que conseguimos escapar dos nossos trilhos viciados de pensamento. E assim propor soluções para o aparentemente sem solução. Pois, como se diz, o impossível é, muitas vezes, apenas o inimaginável...


Misture tudo

Tudo isso significa também agir contra a fragmentação estanque do conhecimento que nos assola cada vez mais aprofundadamente. O que vai de encontro à principal razão para este blog se chamar "Desespecialistas" (o nome foi uma sacada brilhante e repentina de Elizabeth Maria Gigliotti de Sousa, num papo no Frans' Café regado a soda italiana de maçã verde).

Creio que qualquer pessoa que já tenha sentido necessidade de consultar um médico para poder decidir a qual especialista ir para tratar um problema de saúde saberá bem do que estou falando. Isso é a ponta de um iceberg; ela assola todo o conhecimento humano, desde o cabo até o rabo.

As iniciativas inter- e multidisciplinares que começam a povoar o ambiente acadêmico de nada servirão se não forem acompanhadas de uma postura desfragmentizante na sociedade, que rejeite a autoridade intelectual imposta por si só e, ao contrário, demonstre o respeito ao conhecimento de causa alheio submetendo-o à postura crítica e ao "pensar com sua própria cabeça". "Tanto em cima como embaixo", diziam os antigos.

Pois pontos de vista diferentes enriquecem propondo perguntas diferentes e levantando lebres diferentes. Fora dos trilhos.

Logo, tuitar, facebukar, blogar - e papear no bar (ei, nem só de mundo virtual vive o ser humano!). Mas sempre pensando com a própria cabeça (senão esses veículos não farão mais que retumbar um consenso estéril!).

Assim sendo, dar-me-ei ao direito de manifestar o que neuronam meus hemisférios neste espaço virtual!

Em tempo: Reparem que o título está no plural. Pois contempla os comentadores que enriquecerão, espero, as postagens, com suas cabeças diferentes da minha.

Falei demais. Até a próxima!