quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Divagações entre Tom e Chico

Agora, um post sobre música! Peço desculpas aos que não tocam algum instrumento, que não poderão apreciar uma parte deste texto - mas espero que o que sobre não fique tão desinteressante.

De qualquer forma, eu mesmo tenho um conhecimento no máximo rudimentar de teoria musical e o que vou dizer abaixo parte mais da percepção do que ouço. O caso é que os mistérios que me aparecem nas composições de Chico Buarque e Tom Jobim, e que não consigo explicar, me surpreendem e me encantam. E às vezes fazem um "bichinho" peculiar percorrer fugaz e deliciosamente algum ponto das vísceras ou da espinha dorsal. Gostaria de compartilhar um pouco dessas experiências com outros semianalfabetos teóricos musicais.

Seguinte. Um amigo me disse certa vez que a diferença entre a música do Tom Jobim e a do Chico Buarque é que a do Tom é muito complicada, mas soa como algo natural, enquanto a do Chico é muito complicada e soa como algo complicadíssimo.

Claro que estávamos falando de apenas parte da obra dos dois. Mas, de fato. Pegue "Eu sei que vou te amar". Qualquer pessoa minimamente afinada que a conheça pode cantá-la com facilidade. Acontece que a segunda nota cai na sétima maior do acorde...! Certo, as duas primeiras notas formam uma terça maior - coisa fácil de fazer. Só que o ambiente harmônico está na cabeça da pessoa (e aí a sétima maior soa como sétima maior, mesmo), e além disso ela consegue igualmente cantar o que vem em seguida.

Já a "Garota de Ipanema", com aquela melodia inocente, passeia pelas dissonâncias dos acordes. Começa com uma sucessão de nonas, sétimas maiores e sextas e só quando entra o acorde seguinte é que surgem as notas "comuns" (fundamentais, terças e quintas), que costumam entrar nas músicas mais tradicionais. O caso é que, para ouvidos não treinados, é imperceptível que haja algo incomum no início dessa canção. Isso me parece surpreendente.

Por outro lado, qualquer um percebe que há algo muito incomum em certas melodias do Chico, especialmente dos últimos discos. Raros são os que cantam as primeiras notas de "Gota d'água" tal como estão na partitura. Quem nunca viu a partitura, dê uma olhada; se não for músico profissional, provavelmente terá uma surpresa (quem descobriu isso para mim foi Antonio Soares Diniz):

Fonte: Chico Buarque - Uma seleção de partituras. Compilação The Best Brasseller - Abdalan. http://www.slideshare.net/edgararruda/partituras-3


Isso é bossa-nova, isso é muito natural...

É possível que teóricos da música tenham resposta na ponta da língua a todas essas observações. Mas delicio-me "descobrindo" essas coisinhas extraordinárias. Afinal, "só privilegiados" etc... (A propósito, falo aqui em "funções" de acordes, mas no sentido do efeito que causam na percepção, não de sua função formal.)

Bem, nada disso significa que Tom é pior que Chico ou Chico pior que Tom. São apenas estilos diferentes. Mas há que se convir que forjar uma música cheia de dissonâncias que soe como alto natural é uma "arte à parte".

Como isso acontece com a música do Tom? Do alto do meu desconhecimento, quis buscar a explicação em um fenômeno interessante: na primeira vez em que fui "tirar" a "Garota de Ipanema" no violão, demorei um pouco para sacar o tom, com uma ou duas tentativas erradas - seu início parecia uma música composta num tom, mas com acordes de outro. Também já presenciei um músico "caçar" rapidamente o acorde inicial de "Eu sei que vou te amar" quando tentou tocá-la pela primeira vez num piano.

É como se o Tom, nessas músicas, escolhesse judiciosamente as notas e os intervalos (as distâncias entre duas notas consecutivas) de tal modo que tivessem entre si uma relação que de alguma forma se assemelhasse com o que se ouve em uma "música mais natural". De fato, em Tom, apesar de a melodia se sustentar em dissonâncias, os intervalos em si não são nada escabroso. Já Chico põe vários saltos e modulações muito difíceis nas suas músicas.

No entanto, não deve ser bem por aí, pois a aparente naturalidade da música jobiniana permanece mesmo em certas armadilhas "cruéis" das suas canções - sim, elas existem. A segunda parte de "Garota de Ipanema" - "Ah, por que tudo é tão triste..." - é uma grande puxada de tapete para quem não tem experiência com música. Mesmo assim, ela não soa "estranha"! Então há mais por detrás da estratégia de composição do Tom. Talvez os teóricos tenham uma resposta até com enfado de tão óbvia, mas esse mistério para mim é algo fascinante.


Um "piano", um violão, este amor, uma canção...

Claro que há muitas razões bastante evidentes para as diferenças de estilos de Chico e Tom. A começar pelo fato de Chico ter desenvolvido sua musicalidade sobre um violão e o Tom não largava o piano (ainda que haja vídeos mais ou menos recentes de Chico compondo no teclado). Sim, dá para perceber isso ouvindo - há músicas que parecem nitidamente terem sido compostas por pianistas e outras por violonistas. Quem já tentou tocar no piano a melodia de "Rosa", do Pixinguinha, deverá compreender rapidamente do que falo. A mão desliza "redonda" pelas teclas enquanto a linda melodia emerge do instrumento.

Por contraste, tente fazer o mesmo com "Quem tem a viola", sucesso do quarteto Boca Livre. Os intervalos entre as notas são muito grandes, a mão é jogada implacavelmente para lá e para cá. Mas agora tente improvisar um solo de ambas em um violão. Sugiro experimentar a música do Boca em mi. Veja como sai "redondo", os dedos deslizando pelas cordas, a mão esquerda quase só se mexe para mudar de acorde. Composição de violonista.

Outro motivo óbvio para as diferenças é a história. Tom Jobim e João Gilberto fundaram um esquema específico de estrutura harmônica e de uso de dissonâncias, absorvido rapidamente pelos outros bossanovistas (Carlos Lyra, Roberto Menescal & cia.) e trasnferido para a geração seguinte, a geração da MPB dos famosos Festivais da Record (Chico, Edu, Toquinho, etc., e, na década seguinte, João Bosco e Djavan). Tom e João abriram portas que seus sucessores exploraram à farta.

Alguns desenvolveram a partir daí esquemas harmônicos próprios, como João Bosco e Chico Buarque. Ambos começaram com algo próximo do que os bossanovistas faziam, mas foram desenvolvendo estilos muito próprios de harmonia e, em certo ponto de suas carreiras, deram uma guinada sensível. Em Chico, aconteceu principalmente a partir de meados dos anos 1980. Foi quando começaram a aparecer melodias realmente fora dos seus padrões anteriores, que foram se tornando cada vez mais numerosas. Claro que Tom também deu suas guinadas. Quem acha que sua obra se resume à bossa-nova deveria ouvir seus discos dos anos 1970, como "Urubu" e "Matita-Perê". Assim, sendo musicalmente um "filho de Tom & João", e com talento suficiente para inovar a partir do que já tinha, Chico necessariamente deveria divergir de seus padrinhos.


Ah, as inversões do Chico...!

Não me sinto à vontade em falar sobre harmonias buarquianas sem mencionar suas maravilhosas inversões de acordes, então permitam-me uma pequena digressão. Inversão é quando você inverte a sequência natural das notas de um acorde (fundamental, terceiro e quinto graus, no caso de um acorde maior). No violão, é comum manifestar de forma particularmente bela com as inversões no baixo. O Chico usa isso eximiamente, explorou funções novas para as inversões, encheu suas músicas delas - elas fazem parte do que chamei acima de "esquema específico de estrutura harmônica". Tem predileção por fazer o baixo descrever longas escalas de notas em sequência dialogando com o resto da música enquanto a melodia e os acordes vão para lá e para cá - um exemplo particularmente brilhante disso é "Folhetim". Dá para perceber bem se tentar tocá-la no violão.

Chico criou funções e efeitos surpreendentes em especial para o acorde invertido com o sétimo grau no baixo (como G/F, D/C etc. - aquele mesmo com que começa "Águas de Março", do Tom). Em "Samba e amor", aparece um acorde desses no meio da música que quase causa um choque, além de uma sensação indescritível que percorre a espinha. Vem bem no fim do verso "E tenho muito sono de manhã" - e nos correspondentes nas outras estrofes. Fica bem evidente na versão do Caetano Veloso com só voz e violão, no seu disco "Qualquer coisa".

Tom também tem seus momentos de gênio nas escolhas de inversões e dissonâncias, como no acorde inicial de "Águas de Março", com a mesma inversão com sétimo grau no baixo cara ao Chico (mas com uma função bem diferente das que Chico costuma escolher), e no de "Corcovado", que tem o baixo na fundamental mas usa uma inversão belíssima (natural no violão, mas não muito no piano).

Enfim, continuo a divagar e a encontrar surpresas nas músicas desses dois; o que há de mais fascinante que um mistério não resolvido?

6 comentários:

  1. "a do Chico é muito complicada e soa como algo complicadíssimo" é isso mesmo ou é "algo simples que soa como complicado"?

    []s,

    Roberto Takata

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  2. É isso mesmo. A estrutura da frase tem uma quebra de expectativa. A música do Chico é muito complicada. Principalmente nos últimos discos. Estrutura harmônica ousada, acordes que parecem coisa experimental, melodia longe do óbvio.

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  3. Roberto, postei um comentário no nosso jobimaníacos, mas quero postar mais um pouco:

    Há um acorde de uma melodia do Chico, que sempre me deixa como que voltada para dentro: É o que dá a introdução de Soneto

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  4. Nossa, eu não conhecia essa "Soneto"!!!

    Com relação a complexidade na simplicidade, lembrei-me dos ritmos do Djavan - ele quase sempre coloca um ritmo completamente atravessado na suas músicas, mas a gente só percebe se for tentar cantar enquanto toca - aí o cara fica doido. Lembrei-me também das modulações do chorinho - mudanças de tom no meio da música. "Carinhoso" do Pixinguinha é um caso extremo. Modula de compasso em compasso e soa naturalíssimo. Toques de genialidade.

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  5. Soneto é uma das coisas mais lindas do Chico. A melodia é impressionantemente torta e linda! Aparentemente simples, não é? O final pode derrubar cantores experientes, já vi isso acontecer. Sem falar na letra!

    Djavan é isso mesmo. Creia, só cantar já fica meio complicado em determinadas músicas.

    Me lembrei de Passarim, do Tom. Outra que parece simples e é dificílima!

    Iracema Voou, do Chico...

    Sim, são toques de genialidade.

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  6. Roberto, seu artigo está excelente. Já li algumas vezes e, a cada vez que releio, dou uma chegadinha ao piano para conferir uma nota, uma inversão, um acorde com uma sétima..... enfim, ele me deu a certeza de que muitas vezes tocamos sem perceber certas sutilezas, certas belezas, certas genialidades.
    Parabéns!!!

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