A Terra é desabitada há séculos. Entulhos espalham-se por todos os lados. No meio do caos, uma última maquininha construída pelos humanos, que sobreviveu a esse tempo todo, continua diligente no que foi programada para fazer. Vai para lá e para cá, trabalhando sem parar.
É um robozinho simples, já desgastado, movido a energia solar. A expressividade de sua aparência e seus movimentos testemunha a competência dos animadores do filme "Wall-E" (pronuncia-se "Uólii"). Mesmo considerando o que o fundador das empresas Disney conseguiu fazer com um camundongo, o resultado que a sua associada Pixar obteve para o robozinho velho e sujo é surpreendente. E lograram uma textura bastante agradável para um cenário desértico de lixo e destruição.
Na primeira parte do desenho, o espectador é um voyeur observando a divertida atividade diária da maquininha. Onde ela dorme (energia solar não está disponivel o dia todo...), como começa seus trabalhos, o que faz com o que vai encontrando pelo caminho.
Até que, claro, encontra algo diferente. Mas eis que nesse universo ficcional as máquinas têm caprichos, interesses próprios e curiosidade - e conseguem com dificuldade pronunciar seus próprios nomes. E a curiosidade de Wall-E o faz distanciar-se completamente de sua diretriz primária.
Logo, entra em cena um novo personagem - outro robozinho, totalmente distinto, novíssimo e de design futurista. Vem então a segunda parte do filme, a da aventura. E, como toda boa aventura cinematográfica, regada a um romance. Ah, sim, aqui as máquinas são também capazes de se apaixonar! (Mas será que haverá correspondência...?)
Máquinas com olhinhos pidões
O que aconteceu com a Terra? Para onde foram todas as pessoas? Qual o papel das duas máquinas nisso? O espectador vai descobrindo na medida em que a trama corre. A história é boa - na primeira parte, o espectador é levado pela mão a explorar o curioso cenário ficcional dessa animação; agora, ele é um detetive, destrinchando aos poucos o mistério, reconstruindo a trama; no trecho final, vibrará com a aventura e a ação. Primeiro o lúdico, depois a inteligência, depois o entusiasmo.
E tudo permeado com a emoção carinhosa transmitida por um insólito romance entre máquinas. Mas o que atrai mesmo não é somente essa estrutura: as maquininhas, oh!, são muito expressivas! Esses olhinhos "pidões", esses movimentos quase humanos - mesmo que o robozinho mais pareça um caixote, um ovo ou um simples círculo dependurado no teto!
De brinde, uma homenagem ao antológico "E.T. - O Extraterrestre", de Steven Spielberg. Os espectadores ao redor dos seus 40 anos hão de se lembrar do mar de emoção que foi essa película inesquecível para a criançada. E vão notar facilmente a semelhança entre Wall-E e o querido e enrugado alienígena. Não é apenas uma apropriação pura e simples, pois em certos momentos, a citação é obvia demais, tanto na imagem quanto nos movimentos da cabeça e no jeito de falar.
Comecei a ver esse filme quando zapeava na TV a cabo e cliquei no canal segundos antes de ele começar. Vi até o fim. Coisa rara quando zapeio. Animaçãozinha encantadora.
sábado, 26 de fevereiro de 2011
sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011
Para que serve o Twitter, afinal?
Quando entrei no Twitter, minha primeira micromensagem foi assim:
Pois é. Para que serve o Twitter, afinal? Essa maçaroca de mensagens telegráficas sobre assuntos aleatórios?
O Twitter se molda ao usuário - Bom, em pouco tempo descobri para que ele serve para mim. Pois, na verdade, o Twitter é um sistema que vai se moldando ao usuário na medida em que ele o usa, adquirindo funções diferentes dependendo da pessoa. Por meio de quem a gente segue, e por meio dos tuítes a que damos atenção, a gente forma o perfil das mensagens que a gente recebe e vai "montando" uma maquininha com uma certas funções. Para mim, por exemplo, a principal função é uma drástica diversificação das fontes de notícias. Outras pessoas vão usar de outras formas. É um coringa.
Diversificação das fontes - Antes de aderir ao "microblog", eu lia basicamente dois ou três jornais por dia pela Internet e algumas poucas fontes de outros tipos. E isso - importante, agora! - na midia mainstream. Dizer que a gente deve procurar outras visões é bonito, mas o problema é que era excessivamente trabalhoso ir atrás de dezenas de sites com ângulos alternativos todo dia. Com o Twitter, não preciso mais fazer isso: eles vêm até mim. Com isso, multipliquei dramaticamente a variedade do que leio e, mais importante, posso receber coisas vindas de fontes absolutamente à margem do mainstream. O underground emerge.
Não faço isso apenas seguindo os tuítes dessas fontes. Grande parte delas vêm de amigos meus que tuítam por aí. É como normalmente as fontes alternativas são divulgadas: no boca-a-boca. Só que as redes sociais potencializam e multiplicam esse efeito. Sim, as redes sociais virtuais aumentam o espaço para as opiniões alternativas e diminuem a da visão majoritária. Pelo menos, para mentes críticas, que se abrem para isso (para mentes fechadas, a Internet pode servir como uma grande caixa de ressonância conservadora).
Promoção do alternativo e do "não-institucional" - Também diminuiu muito minha escravidão da grande mídia com grandes apartatos de divulgação. A internet com conteúdo feito pelo usuário dá visibilidade para quem tem o que dizer e não tem uma grande instituição difusora por detrás. Aparecem links para uma quantidade de blogs, artigos em espanhol e em inglês, que eu jamais conseguiria alcançar de outra forma.
Redes de contatos - Mas isso é só a principal função do Twitter para mim. Há várias outras. Uma boa é gerenciamento de contatos. Já várias vezes me aproximei de pessoas interessantes pelo Twitter. Se ela costumar mandar e responder mensagens, a ideia é comentar alguma coisa que ela envia. Ela responde e, assim, vai-se criando uma ligação, ambos vão se acostumando com a cara um do outro, adquirem proximidade. Isso é mais difícil de se fazer por outros meios, porque o Twitter "achata" a variação de distâncias entre pessoas comuns e personalidades mais públicas - e até mesmo instituições (você pode fazer o mesmo com os tuiteiros de instituições).
O efeito "sensação de intimidade" - Detectei um curioso fenômeno nessa experiência de gerenciar contatos pelo Twitter. Ao seguir uma pessoa, mesmo que não interaja com ela, é comum que se desenvolva um vínculo, uma familiaridade mais íntima com ela. Talvez tenha algo a ver com o que o jornalista Clive Thompson chamou de "propriocepção social". Acontece que funciona no sentido contrário, também. Quem te segue pode desenvolver a mesma intimidade com relação a você. De modo que é possível usar esse efeito para construir redes de contatos. Literalmente, usar o Twitter para desenvolver percepção de intimidade com outras pessoas.
Manter lembranças de experiências - Eu uso esse efeito sobre a intimidade também para manter vínculos com lugares e coisas. Certa vez fiz uma viagem à Argentina e não queria que, quando eu voltasse, toda aquela magia desaparecesse de repente, substituída pela volta ao batente nu e cru. Queria que não fosse apenas uma experiência passageira que some assim que o doce acaba. Então comecei a seguir o Twitter do jornal La Nación. Simplesmente lendo algumas coisas que apareciam. Funcionou! Aquele belo país manteve sua presença na superfície da minha mente e fico muito feliz com isso.
Os outros lados
Peremptório x matizado - Apesar de o Twitter ter a "cara" do tuiteiro, há problemas estruturais que são mais gerais. Um é que, com menagens tão pequenas, a tendência é privilegiar as opiniões peremptórias e dificultar a veiculação das visões matizadas, que requerem mais espaço. Em um outro post, em um dos últimos parágrafos, critiquei o Twitter em parte por causa disso. Para variar, o Twitter também tem dois lados. Pode servir para expandir sua mente, seu conhecimento, sua percepção sobre o mundo, ou para contribuir no sentido inteiramente oposto - ainda mais tendo em vista a fugacidade das mensagens (se não são lidas em minutos, perdem-se num imenso "arquivo morto" tuital; e sua rápida sucessão faz tendermos a esquecê-las). Como tudo, depende de como é usada.
Autocentrismo x interação - Outro problema é que as pessoas parecem tender a falar mais de si mesmas ou de espalhar sua própria opinião para o mundo do que participar de uma interação propriamente dita. Um exemplo ilustrativo foi uma amiga com centenas de seguidores que tuitou que iria fazer uma prova importante e ninguém lhe desejou boa prova. Bem, talvez eu esteja simplesmente exigindo do Twitter alguma coisa que ele não é.
Experiencial
Deve haver inúmeras funções possíveis das redes sociais, dependendo de quem a usa. Os egípcios da praça Tahrir que o digam. De qualquer forma, como disse o Clive Thompson, não dá para entender o Twitter apenas passando a vista em tuítes aleatórios de outras pessoas. Vai parecer fútil e sem sentido. O Twitter é experiencial. Para compreendê-lo, é preciso experimentá-lo.
"Ho ho! (como diria o Papai Noel) Acabo de entrar no tweeter. Tendo não mais que uma vaguíssima idéia sobre o que seja essa birosca."E já vi inúmeros "primeiros tuítes" com conteúdo semelhante: "Meu Deus, o que estou fazendo aqui??"
Pois é. Para que serve o Twitter, afinal? Essa maçaroca de mensagens telegráficas sobre assuntos aleatórios?
O Twitter se molda ao usuário - Bom, em pouco tempo descobri para que ele serve para mim. Pois, na verdade, o Twitter é um sistema que vai se moldando ao usuário na medida em que ele o usa, adquirindo funções diferentes dependendo da pessoa. Por meio de quem a gente segue, e por meio dos tuítes a que damos atenção, a gente forma o perfil das mensagens que a gente recebe e vai "montando" uma maquininha com uma certas funções. Para mim, por exemplo, a principal função é uma drástica diversificação das fontes de notícias. Outras pessoas vão usar de outras formas. É um coringa.
Diversificação das fontes - Antes de aderir ao "microblog", eu lia basicamente dois ou três jornais por dia pela Internet e algumas poucas fontes de outros tipos. E isso - importante, agora! - na midia mainstream. Dizer que a gente deve procurar outras visões é bonito, mas o problema é que era excessivamente trabalhoso ir atrás de dezenas de sites com ângulos alternativos todo dia. Com o Twitter, não preciso mais fazer isso: eles vêm até mim. Com isso, multipliquei dramaticamente a variedade do que leio e, mais importante, posso receber coisas vindas de fontes absolutamente à margem do mainstream. O underground emerge.
Não faço isso apenas seguindo os tuítes dessas fontes. Grande parte delas vêm de amigos meus que tuítam por aí. É como normalmente as fontes alternativas são divulgadas: no boca-a-boca. Só que as redes sociais potencializam e multiplicam esse efeito. Sim, as redes sociais virtuais aumentam o espaço para as opiniões alternativas e diminuem a da visão majoritária. Pelo menos, para mentes críticas, que se abrem para isso (para mentes fechadas, a Internet pode servir como uma grande caixa de ressonância conservadora).
Promoção do alternativo e do "não-institucional" - Também diminuiu muito minha escravidão da grande mídia com grandes apartatos de divulgação. A internet com conteúdo feito pelo usuário dá visibilidade para quem tem o que dizer e não tem uma grande instituição difusora por detrás. Aparecem links para uma quantidade de blogs, artigos em espanhol e em inglês, que eu jamais conseguiria alcançar de outra forma.
Redes de contatos - Mas isso é só a principal função do Twitter para mim. Há várias outras. Uma boa é gerenciamento de contatos. Já várias vezes me aproximei de pessoas interessantes pelo Twitter. Se ela costumar mandar e responder mensagens, a ideia é comentar alguma coisa que ela envia. Ela responde e, assim, vai-se criando uma ligação, ambos vão se acostumando com a cara um do outro, adquirem proximidade. Isso é mais difícil de se fazer por outros meios, porque o Twitter "achata" a variação de distâncias entre pessoas comuns e personalidades mais públicas - e até mesmo instituições (você pode fazer o mesmo com os tuiteiros de instituições).
O efeito "sensação de intimidade" - Detectei um curioso fenômeno nessa experiência de gerenciar contatos pelo Twitter. Ao seguir uma pessoa, mesmo que não interaja com ela, é comum que se desenvolva um vínculo, uma familiaridade mais íntima com ela. Talvez tenha algo a ver com o que o jornalista Clive Thompson chamou de "propriocepção social". Acontece que funciona no sentido contrário, também. Quem te segue pode desenvolver a mesma intimidade com relação a você. De modo que é possível usar esse efeito para construir redes de contatos. Literalmente, usar o Twitter para desenvolver percepção de intimidade com outras pessoas.
Manter lembranças de experiências - Eu uso esse efeito sobre a intimidade também para manter vínculos com lugares e coisas. Certa vez fiz uma viagem à Argentina e não queria que, quando eu voltasse, toda aquela magia desaparecesse de repente, substituída pela volta ao batente nu e cru. Queria que não fosse apenas uma experiência passageira que some assim que o doce acaba. Então comecei a seguir o Twitter do jornal La Nación. Simplesmente lendo algumas coisas que apareciam. Funcionou! Aquele belo país manteve sua presença na superfície da minha mente e fico muito feliz com isso.
Os outros lados
Peremptório x matizado - Apesar de o Twitter ter a "cara" do tuiteiro, há problemas estruturais que são mais gerais. Um é que, com menagens tão pequenas, a tendência é privilegiar as opiniões peremptórias e dificultar a veiculação das visões matizadas, que requerem mais espaço. Em um outro post, em um dos últimos parágrafos, critiquei o Twitter em parte por causa disso. Para variar, o Twitter também tem dois lados. Pode servir para expandir sua mente, seu conhecimento, sua percepção sobre o mundo, ou para contribuir no sentido inteiramente oposto - ainda mais tendo em vista a fugacidade das mensagens (se não são lidas em minutos, perdem-se num imenso "arquivo morto" tuital; e sua rápida sucessão faz tendermos a esquecê-las). Como tudo, depende de como é usada.
Autocentrismo x interação - Outro problema é que as pessoas parecem tender a falar mais de si mesmas ou de espalhar sua própria opinião para o mundo do que participar de uma interação propriamente dita. Um exemplo ilustrativo foi uma amiga com centenas de seguidores que tuitou que iria fazer uma prova importante e ninguém lhe desejou boa prova. Bem, talvez eu esteja simplesmente exigindo do Twitter alguma coisa que ele não é.
Experiencial
Deve haver inúmeras funções possíveis das redes sociais, dependendo de quem a usa. Os egípcios da praça Tahrir que o digam. De qualquer forma, como disse o Clive Thompson, não dá para entender o Twitter apenas passando a vista em tuítes aleatórios de outras pessoas. Vai parecer fútil e sem sentido. O Twitter é experiencial. Para compreendê-lo, é preciso experimentá-lo.
P.S. 1 - Este texto é o desenvolvimento de um comentário que pus num post sobre o mesmo assunto do blog Lousa Digital, de Sônia Bertocchi.
P.2. 2 - Se quiserem uma visão mais aprofundada das redes sociais, tem este livro da Raquel Recuero: "Redes sociais na Internet", disponível para download.
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011
Cisne Negro
Saí chocado do filme "Cisne Negro". Nunca antes uma película de cinema havia me causado tal efeito. Passei rapidamente numa livraria depois; ao sair, ainda estava arfando. Demorei para voltar daquele estranho universo paralelo ao qual fui catapultado.
Seguindo a dinâmica das grandes óperas e peças de dança, o filme começou tranquilo, pianissimo, mas foi crescendo, crescendo, envolvendo, envolvendo, até chegar num clímax fortissimo e definitivo, um grand finale inesquecível.
A metáfora tem múltiplas dimensões. A própria vida da personagem principal, a bailarina Nina Sayers, interpretada intensamente por Nathalie Portman, assemelha-se à inspiração da história, o balé "O lago dos cisnes", de Tchaikovsky. O crescendo do filme acompanha também a "libertação interior" da personagem. Inicialmente uma personalidade contida e obcecada com a técnica, vai libertando paulatinamente o seu "cisne negro" - o lado da paixão intensa, que vem das entranhas, que mantinha cuidadosamente oculto em seu interior.
É também uma contraposição entre a linha estritamente técnica de interpretação de obras de arte e a linha "visceral", que usa a técnica como instrumento para conseguir expressar a sensibilidade e alcançar a expressão mais profunda do eu do artista - e atingir sensibilidades igualmente profundas dentro do espectador.
Que, salta aos olhos, é a linha do diretor Darren Aronofsky e dos quatro roteiristas (é produção independente). Quem assiste nas cadeiras do cinema vai sendo envolvido até os ossos por uma articulação mestra entre doses crescentes de suspense e de mistura entre o real e o onírico, que acompanham a contínua "descida ao abismo" do lado negro da alma, e uma cuidadosa estratégia de identificação espectador-personagem. O efeito é explosivo, arrepiante.
Aliado a isso, grandes interpretações. A atuação radical de Nathalie Portman é distante de tudo o que tem feito ultimamente. Outras duas atrizes, Mila Kunis (Lily) e Barbara Hershey (a mãe de Nina), fazem com Nathalie uma envolvente "dança" de dominação, manipulação e libertação entre três personagens intensos. Wynona Ryder (Beth), que está surpreendente, completa o quarteto feminino; sua personagem aparece pouco, mas na quantidade justa para marcar todo o espaço da obra - talvez porque encarne um medo permanente de Nina, contra o qual ela luta o tempo todo, fazendo Beth estar simbolicamente presente e atuante na maior parte do filme. Em meio ao ambiente de ciumeira do meio artístico, o processo de transição de Nina é múltiplo: metaforizam-se mutuamente, como numa rede de metassignificados, o desabrochar sexual, o conflito com as amarras da mãe, o amadurecimento artístico - mas, principalmente, a luta cada vez mais desesperada contra si mesma.
Mas o resultado pleno jamais seria alcançado sem o modo genial como foi utilizada a trilha sonora de Tchaikovsky. Escritores e compositores russos do século XIX e início do XX - Dostoievsky, Tchaikovsky, Rachmaninoff - possuem uma carga de paixão em suas obras de uma intensidade difícil de se igualar. Acessar essa caixa de pandora é que é uma arte à parte. Certas obras de Tchaikovsky pertencem àquela classe que possui um potencial de efeito mágico que raramente é alcançado pelas execuções, seja no palco, seja em ambientações em filmes de cinema. São músicas carregadas de sentimento, mas que precisam de alguém que as faça "chegar lá". Quando isso acontece, o espectador entra em outra dimensão.
Demorei para voltar.
Seguindo a dinâmica das grandes óperas e peças de dança, o filme começou tranquilo, pianissimo, mas foi crescendo, crescendo, envolvendo, envolvendo, até chegar num clímax fortissimo e definitivo, um grand finale inesquecível.
A metáfora tem múltiplas dimensões. A própria vida da personagem principal, a bailarina Nina Sayers, interpretada intensamente por Nathalie Portman, assemelha-se à inspiração da história, o balé "O lago dos cisnes", de Tchaikovsky. O crescendo do filme acompanha também a "libertação interior" da personagem. Inicialmente uma personalidade contida e obcecada com a técnica, vai libertando paulatinamente o seu "cisne negro" - o lado da paixão intensa, que vem das entranhas, que mantinha cuidadosamente oculto em seu interior.
É também uma contraposição entre a linha estritamente técnica de interpretação de obras de arte e a linha "visceral", que usa a técnica como instrumento para conseguir expressar a sensibilidade e alcançar a expressão mais profunda do eu do artista - e atingir sensibilidades igualmente profundas dentro do espectador.
Que, salta aos olhos, é a linha do diretor Darren Aronofsky e dos quatro roteiristas (é produção independente). Quem assiste nas cadeiras do cinema vai sendo envolvido até os ossos por uma articulação mestra entre doses crescentes de suspense e de mistura entre o real e o onírico, que acompanham a contínua "descida ao abismo" do lado negro da alma, e uma cuidadosa estratégia de identificação espectador-personagem. O efeito é explosivo, arrepiante.
Aliado a isso, grandes interpretações. A atuação radical de Nathalie Portman é distante de tudo o que tem feito ultimamente. Outras duas atrizes, Mila Kunis (Lily) e Barbara Hershey (a mãe de Nina), fazem com Nathalie uma envolvente "dança" de dominação, manipulação e libertação entre três personagens intensos. Wynona Ryder (Beth), que está surpreendente, completa o quarteto feminino; sua personagem aparece pouco, mas na quantidade justa para marcar todo o espaço da obra - talvez porque encarne um medo permanente de Nina, contra o qual ela luta o tempo todo, fazendo Beth estar simbolicamente presente e atuante na maior parte do filme. Em meio ao ambiente de ciumeira do meio artístico, o processo de transição de Nina é múltiplo: metaforizam-se mutuamente, como numa rede de metassignificados, o desabrochar sexual, o conflito com as amarras da mãe, o amadurecimento artístico - mas, principalmente, a luta cada vez mais desesperada contra si mesma.
Mas o resultado pleno jamais seria alcançado sem o modo genial como foi utilizada a trilha sonora de Tchaikovsky. Escritores e compositores russos do século XIX e início do XX - Dostoievsky, Tchaikovsky, Rachmaninoff - possuem uma carga de paixão em suas obras de uma intensidade difícil de se igualar. Acessar essa caixa de pandora é que é uma arte à parte. Certas obras de Tchaikovsky pertencem àquela classe que possui um potencial de efeito mágico que raramente é alcançado pelas execuções, seja no palco, seja em ambientações em filmes de cinema. São músicas carregadas de sentimento, mas que precisam de alguém que as faça "chegar lá". Quando isso acontece, o espectador entra em outra dimensão.
Demorei para voltar.
terça-feira, 22 de fevereiro de 2011
A ditadura segundo um ex-alienado
Testemunhos sobre a ditadura militar brasileira (1964-1985) vêm invariavelmente de pessoas que têm muita história de sofrimento para contar ou então de outras que estavam "do lado de lá". Nunca vi, porém, um depoimento de alguém que realmente não estivesse nem aí na época, um alienado total.
O pepino é que muitas vezes os regimes autoritários "ensinam" para esses tipos que certas coisas absolutamente bizarras são normais. E creio que eles constituem uma porção bastante grande da sociedade.
Senão, vejamos. Eu soube que estávamos numa ditadura aos 16 anos, quando acompanhávamos pela TV a apuração das eleições indiretas em 1984 e um tio me deu a preciosa informação.
Como isso pôde acontecer? Dois motivos. (1) Eu não estava nem aí (não lia jornais, achava um saco). (2) Ninguém me disse. É no (2) que se encontra o grande problema. Grande parte da população brasileira simplesmente "entrava no esquema", pois era o modo de se sobreviver nos empregos e nos cargos. Isso significava, muitas vezes, calar-se. Especialmente diante dos jovens.
Mas, enquanto os adultos se calavam, coisas aconteciam ao redor de nós, crianças. Pequenas coisas. Que nos "ensinavam" grandes coisas.
"Não pode."
Vejam só: quando eu era bem pequeno, um familiar teve a brilhante ideia de dar ao seu periquito de estimação, confinado numa gaiola como todo pássaro doméstico, o singelo nome de "Ernesto".
Era a época do presidente Ernesto Geisel, e mesmo a mais inocente das crianças certamente ouvia esse nome soar aqui e ali, introjetava o som e podia repeti-lo ao léu com a consciência de um papagaio. Belo dia, olhei para a ave amarela e verdinha, que me vigiava atenta olhando de lado, e pronunciei: "Ernesssto Gaaaaaisel".
Ao que alguém prontamente advertiu: "O que é isso!? Não pode! Ernesto Geisel é o nome do presidente da Repúúwwblica!"
E foi então que aprendi que chamar um periquito pelo nome do presidente era feio. Associação: não se pode desacatar o presidente.
Parece coisinha besta, mas crianças são (entre muitas outras coisas) esponjas: elas aprendem rapidamente não apenas instruções objetivas, mas modos de agir e de pensar por detrás de atos e palavras. Pergunto-me: o que atitudes como essa ensinavam para a criançada?
Havia o outro lado da moeda. Em Pedro Leopoldo, interior de Minas, havia uma cadeia perto de casa. O pessoal me proibia de passar na frente; tinha que ser sempre na outra calçada. Diziam que, se criança passasse ali, "polícia pega". Mais ou menos como me falavam dos ciganos (de vez em quando aparecia algum perambulando pela cidade com um grande saco branco pendurado nas costas): não era para chegar perto, senão a "dona" jogava a criança no saco e ia embora com ela.
Não sei bem se é por isso que até hoje eu tenho vontade de mudar de calçada se passo na frente de uma delegacia ou se cruzo com um policial, como se se tratasse de um delinquente mal-encarado. (O engraçado é que isso não acontece com soldados do Exército. Não tenho nenhum problema com eles.)
Numa dessas, há poucos anos, exagerei nos "cuidados" e uns caras de um carro de polícia em Brasília acabaram me abordando e me revistando, eu com as mãos numa árvore. Acharam que quem desconfiava tanto de policiais tinha que ter algum esqueleto dentro da mochila.
Educação "de fundo"
Coisas menos "pequenas" também aconteciam ao nosso redor, à nossa vista.
Costuma-se identificar a ditadura com governos. Mas o autoritarismo do Estado tem tentáculos que vão muito além. Infiltram-se pelas instituições de alto a baixo, que reproduzem na sua estrutura a hierarquia e os desmandos e arbitrariedades do topo. A quantidade de gente que participava desse vasto e capilar aparato autoritário era impressionante.
No colégio onde estudei o ensino médio e a maior parte do fundamental, aprendíamos exercícios militares na Educação Física: Cobrir! Sennntido! Meia-volta, volver! Aprendi um truque com os pés para rodar no "meia-volta, volver" que faz meu corpo parecer girar parado. No fim do recreio e logo antes de começarem as aulas, executávamos o que aprendêramos, quando as turmas se concentravam em filas e um inspetor berrava lá na frente: "Cobrir! Firmes! Cobrir! Firmes! Cobrir! Firmes!"
Esse inspetor tinha um nome sonoro - "Schmidt" - e era o terror da turma. Se alguém fazia uma baderna realmente inaceitável durante uma aula, o professor berrava: "Vai pro ximíti!!!", apontando com o dedo para a porta como para enxotar um cão. E lá ia o aluno de orelhas baixas. Só não se sabe se ele rumava mesmo para a sala do dito ou se ia tomar Coca na cantina (uma vez me mandaram para lá e eu juro que fui até a sala do homem - e não aconteceu nada lá).
Havia os que se indignavam e construíam uma reação dentro de si (depois de conversar com certo número de gente, percebi que essas pessoas eram os que liam jornais). Mas havia quem "recebesse" o "ensinamento de fundo" de como se deveria comportar diante de uma autoridade despótica. De qualquer autoridade.
E talvez de como se comportar como autoridade. Quando o professor tinha que se ausentar por qualquer motivo, colocava na frente da sala um aluno cuja função era observar bem a turma e marcar no quadro o nome de quem fizesse alguma coisa errada. A coisa interessante era que, em geral, o aluno se esmerava bastante bem nessa tarefa (claro que alguns avacalhavam gostosamente).
O Schimidt parecia até manso perto de outro inspetor, que também dava aulas de algumas matérias, e que era de um autoritarismo quase demente. Certa vez, irrompeu pela nossa sala, interrompendo a de outro professor, para reclamar que a outra turma (!) tinha feito intolerável algazarra e então passou a chamar-nos de "seus bostinhas!!!", aos gritos, batendo os pés no chão feito uma criança contrariada. Esse estropício também dava aulas de inglês e de... religião (era um colégio franciscano).
Acho que ele representava a versão da escola da "face violenta" do regime. O resto da administração representava a "face Brasil ame-o ou deixe-o".
A moral é cívica, o civismo é moral e tudo é dirigido
E tinha, claro, aquela matéria estranhíssima, Educação Moral e Cívica. Era abordada com o método do "estudo dirigido" - havia um livro com lacunas no texto e tínhamos que preenchê-las. Coisas como "o que é virtude", "o que é Estado" etc. Ou seja, eles "ensinavam" valores morais associando-os por superposição ao conhecimento sobre a estrutura do Estado e do que então era considerado "politicamente correto". Na prova, faziam perguntas que só respondia quem decorava.
O método era tão eficiente que, após quatro anos disso, a única coisa que aprendi foi que "os elementos do Estado são: governo, território e povo". Caiu numa prova e acertei. Espero que tenha sido só isso, mesmo. Mas tenho dúvidas muito sérias a respeito.
Coisa interessante era que o professor de Educação Moral e Cívica era também professor de religião...
(Esse professor, aliás, certa vez desistiu de tudo, vendeu seus bens e passou a vender churros no pátio do colégio, diante dos olhos atônitos dos alunos; depois arrumou um emprego de garçon numa lanchonete árabe - foi o único que vi fazer jus à ascendência franciscana da escola, enquanto os freis de batina andavam de carro).
E aí parecia haver crianças que reagiam desenvolvendo um senso de reação à autoridade agudo e outras que simplesmente aprendiam a obedecer.
Tudo isso me remete a uma coisa terrível, que tem a ver com o que Caetano Veloso falou no show "Circuladô" em Curitiba, antes de cantar "Debaixo dos caracóis" - aquela música que o Roberto Carlos fez para ele quando estava exilado em Londres. Caê referiu-se às origens da ditadura com a expressão, dita bem pausadamente, "coisas vindas de regiões profundas do ser do Brasil".
Quando leio sobre a História do Brasil, tendo muito a concordar com isso. Tem a ver conosco - nós, enquanto nação, enquanto povo. Com certos elementos lá dentro do "ser do Brasil". Sem esquecer, obviamente, das conjunturas históricas, e sem despolitizar a questão. É que isso também faz parte dessas conjunturas. Se esquecermos disso, se acharmos que tudo veio só de uma classe militar com mentalidade "retrógrada", pode acontecer novamente.
De qualquer forma, Caetano logo logo arrematou que a música do Roberto representava manifestações vindas de "regiões igualmente profundas do ser do Brasil".
O pepino é que muitas vezes os regimes autoritários "ensinam" para esses tipos que certas coisas absolutamente bizarras são normais. E creio que eles constituem uma porção bastante grande da sociedade.
Senão, vejamos. Eu soube que estávamos numa ditadura aos 16 anos, quando acompanhávamos pela TV a apuração das eleições indiretas em 1984 e um tio me deu a preciosa informação.
Como isso pôde acontecer? Dois motivos. (1) Eu não estava nem aí (não lia jornais, achava um saco). (2) Ninguém me disse. É no (2) que se encontra o grande problema. Grande parte da população brasileira simplesmente "entrava no esquema", pois era o modo de se sobreviver nos empregos e nos cargos. Isso significava, muitas vezes, calar-se. Especialmente diante dos jovens.
Mas, enquanto os adultos se calavam, coisas aconteciam ao redor de nós, crianças. Pequenas coisas. Que nos "ensinavam" grandes coisas.
"Não pode."
Vejam só: quando eu era bem pequeno, um familiar teve a brilhante ideia de dar ao seu periquito de estimação, confinado numa gaiola como todo pássaro doméstico, o singelo nome de "Ernesto".
Era a época do presidente Ernesto Geisel, e mesmo a mais inocente das crianças certamente ouvia esse nome soar aqui e ali, introjetava o som e podia repeti-lo ao léu com a consciência de um papagaio. Belo dia, olhei para a ave amarela e verdinha, que me vigiava atenta olhando de lado, e pronunciei: "Ernesssto Gaaaaaisel".
Ao que alguém prontamente advertiu: "O que é isso!? Não pode! Ernesto Geisel é o nome do presidente da Repúúwwblica!"
E foi então que aprendi que chamar um periquito pelo nome do presidente era feio. Associação: não se pode desacatar o presidente.
Parece coisinha besta, mas crianças são (entre muitas outras coisas) esponjas: elas aprendem rapidamente não apenas instruções objetivas, mas modos de agir e de pensar por detrás de atos e palavras. Pergunto-me: o que atitudes como essa ensinavam para a criançada?
Havia o outro lado da moeda. Em Pedro Leopoldo, interior de Minas, havia uma cadeia perto de casa. O pessoal me proibia de passar na frente; tinha que ser sempre na outra calçada. Diziam que, se criança passasse ali, "polícia pega". Mais ou menos como me falavam dos ciganos (de vez em quando aparecia algum perambulando pela cidade com um grande saco branco pendurado nas costas): não era para chegar perto, senão a "dona" jogava a criança no saco e ia embora com ela.
Não sei bem se é por isso que até hoje eu tenho vontade de mudar de calçada se passo na frente de uma delegacia ou se cruzo com um policial, como se se tratasse de um delinquente mal-encarado. (O engraçado é que isso não acontece com soldados do Exército. Não tenho nenhum problema com eles.)
Numa dessas, há poucos anos, exagerei nos "cuidados" e uns caras de um carro de polícia em Brasília acabaram me abordando e me revistando, eu com as mãos numa árvore. Acharam que quem desconfiava tanto de policiais tinha que ter algum esqueleto dentro da mochila.
Educação "de fundo"
Coisas menos "pequenas" também aconteciam ao nosso redor, à nossa vista.
Costuma-se identificar a ditadura com governos. Mas o autoritarismo do Estado tem tentáculos que vão muito além. Infiltram-se pelas instituições de alto a baixo, que reproduzem na sua estrutura a hierarquia e os desmandos e arbitrariedades do topo. A quantidade de gente que participava desse vasto e capilar aparato autoritário era impressionante.
No colégio onde estudei o ensino médio e a maior parte do fundamental, aprendíamos exercícios militares na Educação Física: Cobrir! Sennntido! Meia-volta, volver! Aprendi um truque com os pés para rodar no "meia-volta, volver" que faz meu corpo parecer girar parado. No fim do recreio e logo antes de começarem as aulas, executávamos o que aprendêramos, quando as turmas se concentravam em filas e um inspetor berrava lá na frente: "Cobrir! Firmes! Cobrir! Firmes! Cobrir! Firmes!"
Esse inspetor tinha um nome sonoro - "Schmidt" - e era o terror da turma. Se alguém fazia uma baderna realmente inaceitável durante uma aula, o professor berrava: "Vai pro ximíti!!!", apontando com o dedo para a porta como para enxotar um cão. E lá ia o aluno de orelhas baixas. Só não se sabe se ele rumava mesmo para a sala do dito ou se ia tomar Coca na cantina (uma vez me mandaram para lá e eu juro que fui até a sala do homem - e não aconteceu nada lá).
Havia os que se indignavam e construíam uma reação dentro de si (depois de conversar com certo número de gente, percebi que essas pessoas eram os que liam jornais). Mas havia quem "recebesse" o "ensinamento de fundo" de como se deveria comportar diante de uma autoridade despótica. De qualquer autoridade.
E talvez de como se comportar como autoridade. Quando o professor tinha que se ausentar por qualquer motivo, colocava na frente da sala um aluno cuja função era observar bem a turma e marcar no quadro o nome de quem fizesse alguma coisa errada. A coisa interessante era que, em geral, o aluno se esmerava bastante bem nessa tarefa (claro que alguns avacalhavam gostosamente).
O Schimidt parecia até manso perto de outro inspetor, que também dava aulas de algumas matérias, e que era de um autoritarismo quase demente. Certa vez, irrompeu pela nossa sala, interrompendo a de outro professor, para reclamar que a outra turma (!) tinha feito intolerável algazarra e então passou a chamar-nos de "seus bostinhas!!!", aos gritos, batendo os pés no chão feito uma criança contrariada. Esse estropício também dava aulas de inglês e de... religião (era um colégio franciscano).
Acho que ele representava a versão da escola da "face violenta" do regime. O resto da administração representava a "face Brasil ame-o ou deixe-o".
A moral é cívica, o civismo é moral e tudo é dirigido
E tinha, claro, aquela matéria estranhíssima, Educação Moral e Cívica. Era abordada com o método do "estudo dirigido" - havia um livro com lacunas no texto e tínhamos que preenchê-las. Coisas como "o que é virtude", "o que é Estado" etc. Ou seja, eles "ensinavam" valores morais associando-os por superposição ao conhecimento sobre a estrutura do Estado e do que então era considerado "politicamente correto". Na prova, faziam perguntas que só respondia quem decorava.
O método era tão eficiente que, após quatro anos disso, a única coisa que aprendi foi que "os elementos do Estado são: governo, território e povo". Caiu numa prova e acertei. Espero que tenha sido só isso, mesmo. Mas tenho dúvidas muito sérias a respeito.
Coisa interessante era que o professor de Educação Moral e Cívica era também professor de religião...
(Esse professor, aliás, certa vez desistiu de tudo, vendeu seus bens e passou a vender churros no pátio do colégio, diante dos olhos atônitos dos alunos; depois arrumou um emprego de garçon numa lanchonete árabe - foi o único que vi fazer jus à ascendência franciscana da escola, enquanto os freis de batina andavam de carro).
E aí parecia haver crianças que reagiam desenvolvendo um senso de reação à autoridade agudo e outras que simplesmente aprendiam a obedecer.
Tudo isso me remete a uma coisa terrível, que tem a ver com o que Caetano Veloso falou no show "Circuladô" em Curitiba, antes de cantar "Debaixo dos caracóis" - aquela música que o Roberto Carlos fez para ele quando estava exilado em Londres. Caê referiu-se às origens da ditadura com a expressão, dita bem pausadamente, "coisas vindas de regiões profundas do ser do Brasil".
Quando leio sobre a História do Brasil, tendo muito a concordar com isso. Tem a ver conosco - nós, enquanto nação, enquanto povo. Com certos elementos lá dentro do "ser do Brasil". Sem esquecer, obviamente, das conjunturas históricas, e sem despolitizar a questão. É que isso também faz parte dessas conjunturas. Se esquecermos disso, se acharmos que tudo veio só de uma classe militar com mentalidade "retrógrada", pode acontecer novamente.
De qualquer forma, Caetano logo logo arrematou que a música do Roberto representava manifestações vindas de "regiões igualmente profundas do ser do Brasil".
Obs.: A imagem no início deste texto, retirada de um vídeo do Youtube, mostra a imagem do documento que comprovava a liberação, pela Censura Federal, dos programas de televisão para os horários estipulados. Era apresentada na TV antes de todo programa, com uma voz padrão falando: "Programa liberado pela Censura Federal para este horário". No caso, o balé O Lago dos Cisnes, em 1985, liberado para censura livre.
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011
Fragmentação acadêmica ajudou a não preverem a crise de 2008?
Por que a academia não conseguiu prever a crise econômica de 2008? [P.S. - "prevista" para algum momento, a crise foi por vários anos, na forma de "estourará uma bolha em algum momento" - veja os comentários após o fim do texto] Uma análise do economista Raghuram Rajan, da Universidade de Chicago, publicada no Valor Econômico de hoje, diz que os acadêmicos tinham em mãos instrumentos suficientes para isso:
A primeira (eu diria, na verdade, a superespecialização aliada à fragmentação) é um mal geral da academia - falei sobre ela no primeiro post deste blog - e as outras duas articulam-se com ela na argumentação do economista. Ele dá detalhes sobre como funciona:
Aprofundar o conhecimento é bom, o conhecimento dos especialistas é extremamente útil e necessário - mas há que se cuidar para não perder a visão do todo. Senão, acontecerá como na fábula hindu dos cegos diante de um elefante: um pegou na tromba e achou que se tratasse de uma cobra; outro pegou na perna e concluiu que era uma árvore; outro tocou na causa e disse que era uma corda; e assim por diante.
Não que isso seja necessariamente algo a se evitar - afinal, em grande parte das vezes a abordagem pelas partes que torna o assunto administrável e tem resultados extremamene prolíficos -; o problema é quando essas partes não conversam entre si. Aí não temos apenas especialização, mas fragmentação.
E claro que tudo isso é também apenas um pedaço do elefante - as razões para a crise e para que não tenha sido prevista são múltiplas -, mas acho que ajuda bastante na difícil tarefa de abordar o todo o máximo possivel.
"Não é verdade que nós acadêmicos não tínhamos modelos aplicáveis para explicar o acontecido. Se você acreditar que a crise foi provocada por falta de liquidez, tínhamos modelos de sobra analisando a escassez de liquidez e seus efeitos nas instituições financeiras. Se você acreditar que a culpa foi de banqueiros gananciosos e investidores descuidados, confiantes na promessa de resgates governamentais, ou de um mercado que enlouqueceu com a exuberância irracional, também havíamos estudado tudo isso, detalhadamente."Por que, então? Rajan conclui: "Três fatores explicam nosso fracasso coletivo: especialização, a dificuldade de se fazer previsões e o descolamento entre boa parte da profissão e o mundo real."
A primeira (eu diria, na verdade, a superespecialização aliada à fragmentação) é um mal geral da academia - falei sobre ela no primeiro post deste blog - e as outras duas articulam-se com ela na argumentação do economista. Ele dá detalhes sobre como funciona:
"Assim como a medicina, a economia tornou-se altamente compartimentalizada - os macroeconomistas normalmente não prestam atenção ao que os economistas financeiros ou economistas do setor imobiliário estudam e vice-versa. Para ver a crise chegando seria necessário alguém que conhecesse todas essas áreas- da mesma forma que é necessário um clínico geral para reconhecer alguma doença exótica. Como a profissão recompensa apenas análises cuidadosas e bem fundamentadas, mas necessariamente restritas, poucos economistas tentam atravessar subcampos."Já o problema da dificuldade em se fazer previsões (o segundo da listra tríplice de Rajan) está ligado à tendência ao imediatismo, às previsões de curto prazo. "Os poucos benefícios profissionais recompensando a amplitude das análises, aliados à imprecisão e risco de reputação associadas às previsões, desmotivam a maioria dos acadêmicos", diz ele.
Aprofundar o conhecimento é bom, o conhecimento dos especialistas é extremamente útil e necessário - mas há que se cuidar para não perder a visão do todo. Senão, acontecerá como na fábula hindu dos cegos diante de um elefante: um pegou na tromba e achou que se tratasse de uma cobra; outro pegou na perna e concluiu que era uma árvore; outro tocou na causa e disse que era uma corda; e assim por diante.
Não que isso seja necessariamente algo a se evitar - afinal, em grande parte das vezes a abordagem pelas partes que torna o assunto administrável e tem resultados extremamene prolíficos -; o problema é quando essas partes não conversam entre si. Aí não temos apenas especialização, mas fragmentação.
E claro que tudo isso é também apenas um pedaço do elefante - as razões para a crise e para que não tenha sido prevista são múltiplas -, mas acho que ajuda bastante na difícil tarefa de abordar o todo o máximo possivel.
Cara, cadê meus super-heróis??
Eis um teste para você. Considere uma historinha em quadrinhos de mocinhos e vilões. Um dos personagens, para alcançar seus objetivos, realiza interrogatórios sob tortura, faz ataques preventivos e planeja assassinatos seletivos para eliminar seus adversários. Pergunta-se: esse personagem é o mocinho ou o vilão?
Se você disse "mocinho", está desatualizado. Quem fez isso foi Scott Summers, o Ciclope, o atual líder dos X-Men, uma equipe de... super-heróis. Os X-Men são os paladinos da comunidade dos mutantes, pessoas que, por causa de mutações genéticas, adquiriram capacidades incomuns que podem ser tanto superpoderes extraordinários ou maldições terríveis. No universo ficcional, os humanos os "temem e odeiam" e as histórias giram quase todas em torno do conflito entre humanos e mutantes. Os X-Men sempre tentaram provar que ambos podem conviver pacificamente.
Recentemente, os argumentistas da Marvel reduziram os mutantes do seu universo ficcional de milhões para apenas 198, uma megaversão do que Janete Clair fez na novela Água Viva em 1980 (ela fez explodir um shopping-center para eliminar a maioria dos personagens, cujo número havia se tornado quase inadministrável). Desde então, os X-Men estão numa espécie de "estado de guerra" nos quais os fins estão cada vez mais tendendo a justificar os meios. Não por acaso, o arquiinimigo do grupo, Eric Magnus Lensheer, ou Magneto, apareceu no seu refúgio na última edição lançada no Brasil e confessou ter admiração pelo que a liderança de Scott tem conseguido.
A metáfora com conflitos raciais e opressões contra minorias sempre foi evidente nesse pano-de-fundo humanos x mutantes das histórias dos X-Men. A partir de 1975, começaram a aparecer na equipe membros de inúmeras nacionalidades e comunidades - um camponês russo, uma afro-americana, um irlandês, um índio norte-americano, uma judia, e até um brasileiro, Roberto da Costa. Mas parece que agora a metáfora é outra. Qualquer semelhança da descrição no parágrafo anterior com as tentativas do presidente estadunidense George W. Bush de legitimar os interrogatórios sob tortura e os ataques preventivos nos EUA pós-11 de setembro é coincidência só para quem quiser.
Sangue nu
Agora, uma outra dimensão do fenômeno. A violência aparece em desenhos animados e quadrinhos desde o início do século XX, mas praticamente sempre sem sangue visível. Bem, veja esses quadrinhos de histórias dos X-Men de 1983:
Ataques físicos violentos, mas visualmente assépticos, não é? Nada de sangue ou carne dilacerada à vista. Agora veja, estas, recentes:
Pois é. De lá para cá, a violência nas HQs de super-heróis foi se tornando cada vez mais detalhista - sangue epirrando, cadáveres de olhos abertos, membros decepados. Os desenhos computadorizados deram a tudo um realismo cada vez maior.
Além disso, antigamente os heróis quase sempre lutavam com seus superpoderes ou com as próprias mãos. Nos últimos anos, começaram a multiplicar-se os que usam arsenais de armas pesadas à la Rambo. Sem falar que, nas priscas eras, o vilão jamais conseguia explodir o metrô ou o prédio; agora os genocídios são apenas um elemento a mais na trama (no início deste texto, uma explosão mata centenas de inocentes numa praça, diante dos heróis impotentes - publicada originalmente em X-Force 13 em 2009).
Ao leitor atento de quadrinhos, isto parece remeter à grande quebra de paradigma que foi "O cavaleiro das trevas", que reformulou o personagem Batman, tornando-o bem mais sombrio e interessante. Mas não estou falando de reformulações nesse nível. Não houve nada parecido com Scott Summers. Não há continuidade narrativa entre o Batman original e o do Cavaleiro das Trevas; a linha narrativa sofreu um "reboot". Isso não aconteceu com os X-Men. Simplesmente o herói que era referência por suas virtudes morais e éticas passou a agir de outra maneira, sob a pressão das circunstâncias.
Em outras eras, ele lançaria mão do famoso "sempre há outra solução" e no final venceria sem cair na tentação de se tornar igual a seus inimigos. Mas estamos numa era nova. Nas aventuras do grupo X-Force, a partir de 2008, em X-Men Extra (há duas séries dos X-Men nos quadrinhos brasileiros, X-Men e X-Men Extra) ele monta às escondidas planos de assassinatos seletivos de velhos inimigos antes que eles resolvam agir e junta uma equipe de alguns x-men para executá-la. Sua justificativa é a situação acuada extrema dos poucos mutantes que restaram, sob risco de extinção. Um dos números motra Scott orientando a tortura de um vilão para obter informações.
"Os X-Men não matam" era um bordão até os anos 1990. Já no início daquela década, porém, um deles - justo o de alma mais nobre, o russo Piotr Rasputin, o Colossus - matou um vilão a sangue-frio, esmagando seu pescoço com suas mãos superfortes, escandalizado com a matança de que o dito tinha participado numa comunidade de mutantes renegados.
É evidente, pelo estilo dos desenhos e das histórias, que a idade do público-alvo desses quadrinhos aumentou um tanto nos últimos 20 anos. Mas também é claro que ainda são jovens. Não admira que gente como Michael Moore saia perguntando "Cara, cadê o meu país?". O que está acontecendo com os Estados Unidos?
Se você disse "mocinho", está desatualizado. Quem fez isso foi Scott Summers, o Ciclope, o atual líder dos X-Men, uma equipe de... super-heróis. Os X-Men são os paladinos da comunidade dos mutantes, pessoas que, por causa de mutações genéticas, adquiriram capacidades incomuns que podem ser tanto superpoderes extraordinários ou maldições terríveis. No universo ficcional, os humanos os "temem e odeiam" e as histórias giram quase todas em torno do conflito entre humanos e mutantes. Os X-Men sempre tentaram provar que ambos podem conviver pacificamente.
Recentemente, os argumentistas da Marvel reduziram os mutantes do seu universo ficcional de milhões para apenas 198, uma megaversão do que Janete Clair fez na novela Água Viva em 1980 (ela fez explodir um shopping-center para eliminar a maioria dos personagens, cujo número havia se tornado quase inadministrável). Desde então, os X-Men estão numa espécie de "estado de guerra" nos quais os fins estão cada vez mais tendendo a justificar os meios. Não por acaso, o arquiinimigo do grupo, Eric Magnus Lensheer, ou Magneto, apareceu no seu refúgio na última edição lançada no Brasil e confessou ter admiração pelo que a liderança de Scott tem conseguido.
A metáfora com conflitos raciais e opressões contra minorias sempre foi evidente nesse pano-de-fundo humanos x mutantes das histórias dos X-Men. A partir de 1975, começaram a aparecer na equipe membros de inúmeras nacionalidades e comunidades - um camponês russo, uma afro-americana, um irlandês, um índio norte-americano, uma judia, e até um brasileiro, Roberto da Costa. Mas parece que agora a metáfora é outra. Qualquer semelhança da descrição no parágrafo anterior com as tentativas do presidente estadunidense George W. Bush de legitimar os interrogatórios sob tortura e os ataques preventivos nos EUA pós-11 de setembro é coincidência só para quem quiser.
Sangue nu
Agora, uma outra dimensão do fenômeno. A violência aparece em desenhos animados e quadrinhos desde o início do século XX, mas praticamente sempre sem sangue visível. Bem, veja esses quadrinhos de histórias dos X-Men de 1983:
Quadrinhos publicados originalmente em Uncanny X-Men 173 (1983), mostrando uma luta entre Wolverine e o Samurai de Prata.
Ataques físicos violentos, mas visualmente assépticos, não é? Nada de sangue ou carne dilacerada à vista. Agora veja, estas, recentes:
Quadrinhos publicados originalmente em: Cable 6 (2008) (acima, à esquerda); Cable 5 (2008) (acima, à direita); X-Force 17 (2009) (abaixo - o mesmo Wolverine dos quadrinhos anteriores...).
Pois é. De lá para cá, a violência nas HQs de super-heróis foi se tornando cada vez mais detalhista - sangue epirrando, cadáveres de olhos abertos, membros decepados. Os desenhos computadorizados deram a tudo um realismo cada vez maior.
Além disso, antigamente os heróis quase sempre lutavam com seus superpoderes ou com as próprias mãos. Nos últimos anos, começaram a multiplicar-se os que usam arsenais de armas pesadas à la Rambo. Sem falar que, nas priscas eras, o vilão jamais conseguia explodir o metrô ou o prédio; agora os genocídios são apenas um elemento a mais na trama (no início deste texto, uma explosão mata centenas de inocentes numa praça, diante dos heróis impotentes - publicada originalmente em X-Force 13 em 2009).
Ao leitor atento de quadrinhos, isto parece remeter à grande quebra de paradigma que foi "O cavaleiro das trevas", que reformulou o personagem Batman, tornando-o bem mais sombrio e interessante. Mas não estou falando de reformulações nesse nível. Não houve nada parecido com Scott Summers. Não há continuidade narrativa entre o Batman original e o do Cavaleiro das Trevas; a linha narrativa sofreu um "reboot". Isso não aconteceu com os X-Men. Simplesmente o herói que era referência por suas virtudes morais e éticas passou a agir de outra maneira, sob a pressão das circunstâncias.
Em outras eras, ele lançaria mão do famoso "sempre há outra solução" e no final venceria sem cair na tentação de se tornar igual a seus inimigos. Mas estamos numa era nova. Nas aventuras do grupo X-Force, a partir de 2008, em X-Men Extra (há duas séries dos X-Men nos quadrinhos brasileiros, X-Men e X-Men Extra) ele monta às escondidas planos de assassinatos seletivos de velhos inimigos antes que eles resolvam agir e junta uma equipe de alguns x-men para executá-la. Sua justificativa é a situação acuada extrema dos poucos mutantes que restaram, sob risco de extinção. Um dos números motra Scott orientando a tortura de um vilão para obter informações.
"Os X-Men não matam" era um bordão até os anos 1990. Já no início daquela década, porém, um deles - justo o de alma mais nobre, o russo Piotr Rasputin, o Colossus - matou um vilão a sangue-frio, esmagando seu pescoço com suas mãos superfortes, escandalizado com a matança de que o dito tinha participado numa comunidade de mutantes renegados.
É evidente, pelo estilo dos desenhos e das histórias, que a idade do público-alvo desses quadrinhos aumentou um tanto nos últimos 20 anos. Mas também é claro que ainda são jovens. Não admira que gente como Michael Moore saia perguntando "Cara, cadê o meu país?". O que está acontecendo com os Estados Unidos?
P.S. - Veja também: Super-heróis de hoje têm influência negativa em meninos, diz estudo (BBC Brasil, 18/02/2010)
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