domingo, 13 de março de 2011

Aprendendo com falsos fósseis

Uma interessante dica para professores e estudantes de paleontologia pode ser a foto ao lado, que apareceu no Earth Science Picture of the Day do último dia 10. Foi tirada pelo o físico e astrônomo amador Mário Sérgio Teixeira de Freitas, de Curitiba. Parece a marca de um fóssil, talvez de alguns milhões de anos, não é? Mas é apenas o "registro" de um raminho de árvore com um par de folhas que caiu no cimento fresco em uma calçada de Brasília.

A ideia do Mário, professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), é que o processo de formação desse baixo-relevo tem algumas semelhanças com o da constituição de fósseis reais e por isso pode servir de metáfora para ajudar a compreensão dos fenômenos naturais por detrás dos mesmos. Ou seja, entender um processo natural de pelo menos 10 mil anos, praticamente inacessível à percepção humana, por meio de um análogo enolvendo escalas de tempo muito menores e perfeitamente assimiláveis. Ora, as folhas, levadas pelo vento, simplesmente "pousaram" no cimento Portland fresco, que rapidamente secou, perpetuando suas marcas; depois, provavelmente, as intempéries destruíram seus tecidos, deixando apenas a impressão no chão. O resultado foi um registro suficientemente detalhado para que se possa identificar sua origem, por meio da observação da forma das nervuras: trata-se de folhas de goiabeira!

De brinde, a analogia também reforça a necessidade de se distinguir os inúmeros fósseis falsos dos reais, um problema sério tanto para paleontólogos profissionais como para os amantes desses fascinantes registros de eras arcanas.

Texto reproduzido de A Física se Move.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Líbia: a grande inflexão

Impressionante como as percepções sobre o conflito na Líbia mudaram da água para o vinho nos últimos dois dias. Jornalistas e até funcionários da inteligência (como James Clapper, dos EUA) começam a achar que Gadafi vencerá a guerra. Enquanto isso, o avanço das articulações para um bloqueio aéreo, leia-se bombardeio, também parece estar chegando num impasse. A Itália disse que não apoiará intervenção militar. Muito conveniente falar isso agora quando a maré parece virar a favor do ditador líbio - pois, se ele ficar, Roma tem todo o interesse que ele não retalie deixando hordas de refugiados fugidos dos sanguinários conflitos africanos irromperem pelo país adentro. Era Kadafi que os impedia de atravessar o Mediterrâneo, em troca de apoio de Berlusconi.

Já os Estados Unidos estão com todo o aparato militar na frente da costa líbia, mas dizem que só intervirão com apoio da ONU. É possível que, se as forças leais a Gadafi começarem a avançar demais, eles intervenham de qualquer maneira. Mas é possível também que não - e isso indicaria um enfraquecimento da posição geopolítica estadunidense, em relação ao período pré-invasão do Iraque (2003), quando a ONU lhes parecia bem mais "atropelável". Legado do desastroso governo Bush filho. Isso, mesmo que há algumas semanas a União Europeia tenha esperado os EUA romperem com Gadafi para fazer o mesmo, indicando a volta da ascendência estadunidense sobre os europeus, já superada a crise de 2003. Aliás, neste momento, o discurso de Nicholas Sarkozy, o presidente da França, está bem mais belicoso que o de Barack Obama.


Os russos, tem que combinar com os russos!

O Conselho de Segurança da ONU, por sua vez, tem seus famosos cinco membros com poder de veto, entre os quais China e Rússia. Terão eles interesse em chancelar uma intervenção militar? Em especial, o que fará a Rússia? É verdade que ela suspendeu sua venda de armas para Gadafi, mas também é verdade que se aproximou bastante do ditador nos últimos anos. Sim, a Líbia pode ser estratégica para a Rússia. Primeiro, porque é uma cabeça-de-ponte na África e está todo mundo disputando aquele continente - estadunidenses, europeus (estes mais no norte), chineses (no centro e sul), indianos (no sudeste) e até brasileiros (em Angola e Moçambique, principalmente). Quem tem ganas de retomar um pouco da influência em nível global que tinha na Guerra Fria, precisa necessariamente investir na África.

E parece que é isso que a Rússia quer, expandir sua esfera de influência. Isso produz uma disputa com o Ocidente que se manifesta com temperaturas diferentes em diferentes pontos do globo - às vezes incendiando-se, como na guerra com a Geórgia em 2008. Além disso, a Rússia tem se aproximado de alguns desafetos dos EUA, como a Venezuela, e isso pode ser também uma estratégia: já que não tem cacife para disputar com os estadunidenses os países que já estão dentro da sua esfera, os russos fincam "cunhas diplomáticas" onde essa influência ainda não chega com tanta força ou é repelida.

Enfiaram uma na Líbia, de frente para o flanco sul do bloco da OTAN e perto do gargalo do Mediterrâneo entre a Itália e a Tunísia (veja o mapa abaixo). Se a Rússia conseguisse cooptar o norte da África, teria "cercado" o bloco pelo leste e pelo sul. Afinal, a expansão do bloco para o leste está chegando nos seus limites e não é absurdo imaginar que o passo lógico seguinte seria expandirem-se para o sul, para o norte da África - Marrocos, Tunísia e Egito. Mas, com a cooptação de Gadafi, a Rússia meteu uma garfada bem no centro desse filé (e agora as revoltas acabaram com as esperanças de estabilidade e lançaram qualquer esperança da OTAN mais algumas décadas para o futuro).


Massacre aéreo

Quanto aos rebeldes líbios, o grande problema é que sua luta deixou de ser uma guerra de insurgênica - para a qual não existe modelo teórico disponível para garantir vitória das forças regulares - e se tornaram uma guerra mais clássica, com frentes de combate geograficamente definidas - para a qual a receita de bolo é quase infalível: quem tem o domínio dos ares vence e ponto. Foi assim que a Inglaterra evitou ser invadida pela Alemanha na Segunda Guerra: derrotou a Luftwaffe nos ares. É por isso que os EUA bombardeiam implacavelmente seus inimigos antes de qualquer invasão por terra. E eis que Gadafi agora tem o domínio total dos ares em todo o seu território e o usa para massacrar impiedosamente os opositores.

Ou seja, as potências só poderiam evitar o pior com o tal bloqueio aéreo. Mas é possível que os rebeldes colapsem antes do tempo hábil para uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, que precisa de articulações e sondagens prévias de bastidores para se garantir que não haverá um fiasco. Corre-se o risco de, mais uma vez, o Ocidente ficar olhando uma tragédia humanitária e geopolítica acontecer a poucos quilômetros do seu nariz sem fazer nada.

O resultado será péssimo não só para a Líbia, mas para o conceito de multilateralismo: afinal, quando os EUA finalmente resolvem fazer do jeito que lhes dizem que é para fazer - sem ataques unilaterais -, o resultado seria a tragédia. Claro que a conclusão é ilusória - tragédias são os resultados de ações militares unilaterais, como no Iraque em 2003. E há mais: um desfecho pró-Gadafi seria também um sério baque nos movimentos antiautoritários em todo o mundo árabe.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Como funciona um diferencial de automóvel

Sem palavras! Este vídeo é a melhor explicação sobre como funciona um diferencial de automóvel que já vi até hoje. Na verdade, foi a primeira vez que consegui compreender de verdade como funciona. O diferencial é um sistema de engrenagens no eixo traseiro que serve para permitir que as rodas possam girar com velocidades diferentes. Isso porque, quando o carro faz a curva, a roda de dentro da curva gira mais devagar que a de fora. Se não, uma delas vai derrapar. O pepino é: se há só um motor, como fazer com que as rodas girem com velocidades diferentes - e de modo que essa diferença não seja pré-determinada, mas dependa do que você resolve fazer com o carro? A explicação é fascinante. E o extraordinário é que é um vídeo dos anos 1930! Ao que parece, de lá para cá ninguém conseguiu imaginar jeito melhor de explicar. Dica de Leo Deppe pelo Facebook!

quarta-feira, 9 de março de 2011

O "simples extraordinário" da óptica atmosférica

É bom ter um irmão astrônomo e meteorologista amador. Aprendi com sua turma do Clube de Astronomia do Paraná que borrões que vemos cotidianamente no céu, de dia ou de noite, podem ser fenômenos atmosféricos raros e que ocultam fenômenos naturais ao mesmo tempo simples e notáveis. É só saber interpretá-los.

Um exemplo. Já viram um sutil brilho que aparece ao redor da nossa sombra sobre a grama ou num capinzal, ou mesmo num chão arenoso? Não sabem do que estou falando? Vejam as fotos ao lado (parte de cima), tirada deste site. O brilho aparece ao redor da cabeça (ou, se for foto, ao redor da máquina fotográfica...), em geral no fim da tarde, quando a sombra está bem longa sobre o chão.

Não é a "aura" de ninguém, é apenas o seguinte. A parte ao redor da cabeça está, naturalmente, sendo vista com o Sol bem atrás da gente. A luz do Sol chega ali quase paralelamente à linha de visada; por isso, nessa pequena parte vemos pouco as penumbras que existem dos lados de cada grãozinho do chão. Já no resto da área, ao redor, estamos vendo obliquamente - e aí as penumbras laterais dos grãozinhos são mais visíveis. Veja os diagramas ao ao lado, que mostram três casos - com grãos grandes, médios e bem miúdos. O resultado é um contraste: onde vemos menos penumbra, parece-nos mais claro. Daí a mancha brilhante.

Experimente, quando estiver sobre um gramado no fim de tarde. É legal. Fica mais fácil ver se você estiver em movimento.

Isso é algo muito comum, só que a maioria de nós nem percebe. Há outras coisas bem raras. Hoje chegou-me uma foto do meu irmão, mostrando um brilhozinho aparentemente mínimo, que ele viu de um avião quando descia em Porto Alegre. Não vou pôr aqui, porque tem copyright. Cliquem lá. Está no meio da parte inferior, tem a forma de uma sutil linha vertical brilhante. Passaria totalmente despercebido por mim, ou eu acharia que era defeito da minha própria visão, ou qualquer outra coisa sem a menor importância. No entanto, é um fenômeno tão incomum que aquela foto inocente foi publicada na seção de imagens do dia do site Atmospheric Optics, referência no assunto.

A origem desse fenômeno é exatamente a mesma do brilho ao redor da sombra no gramado ou no chão pedregoso no fim de tarde. Só que, ao invés de gramado, há uma plantação. Acontece que esse efeito é em geral circular. Um com forma de linha, como o Fabiano observou, precisa de um alinhamento muito perfeito entre as plantinhas, o que é muito difícil de acontecer. Por isso o pessoal do Atmospheric Optics ficou impressionado.

Bom, tudo isso pode ser um pouco difícil de entender, mas, depois que a gente compreende, a coisa fica tão simples quanto extraordinária. A união do simples e do extraordinário provoca no espírito - no meu, pelo menos - uma sensação... sei lá, um misto de prazer estético e prazer intelectual muito difícil de descrever.

O meu estado de espírito se refletiu na resposta que lhe mandei por e-mail:
"Quando o astronauta desceu na Lua, minha idade atrás, disseram que os namorados tinham perdido sua grande inspiração, que então a fonte mágica do belo luar noturno que iluminava as almas estaria reduzido a um pedaço de minério girando parado ao redor do nada e ainda por cima espetado por uma bandeira dos EUA, tal como uma seta geopolítica atravessando um coração e transformando-o em pedra morta. No entanto, o pedaço de pedra continua fazendo lobos e namorados uivarem exatamente do mesmo jeito e, enquanto, isso os "insensíveis" astrônomos uivam para luzes que iluminam regiões do espírito de cuja existência a maioria dos namorados nem desconfia..."
Tem mais uma porção de fotos do Fabiano Diniz no seu site, cheio de explicações sobre por que os fenômenos acontece - arco íris, halos etc. - ou então no Flickr.

P.S. - A versão original foi corrigida, inclusive com a troca das imagens, seguindo sugestões do físico e astrônomo amador Mário Sérgio Teixeira de Freitas - que também tem uma página que inclui imagens de óptica atmosférica.

terça-feira, 8 de março de 2011

Dia da Mulher: tudo será como antes?

Convido os leitores a apreciarem este excelente post, publicado há exatamente um ano no blog da jornalista Sabine Righetti. É um dos melhores textos sobre os direitos das mulheres que já li. Pela simples razão que ilustra cabalmente como esses direitos não se referem apenas a acesso a cargos, empregos e legislação sobre aborto e outros temas "femininos" (ainda que estas coisas sejam de importância crucial). Trata-se fundamentalmente de uma postura social (e tem a ver com a figura ao lado). Com ela, o resto decorre.

E o modo como normalmente se "comemora" o Dia Internacional das Mulheres não ajuda em nada. Vejo no elevador um cartaz cheio de elogios, com a expressão "Flores de aço" em destaque. No ano passado, houve uma campanha no Twitter para que os homens deixassem de enviar mensagens para dar lugar às mulheres. Como se as mulheres tivessem problemas com essa rede social virtual.

Qual o problema? O problema é que, em ambos os casos, trata-se de uma atitude anestésica, cujo efeito praticamente se resume a nos dar uma impressão de dever cumprido. Na verdade, um mecanismo para aliviar a "culpa" interna - e que, por isso, trabalha contra a causa. Vamos então todos para casa e agora só nos preocupemos com isso no ano que vem... O túmulo que está a Internet sobre o 8 de março deste ano, em comparação com o ano passado, apenas corrobora tudo isso - estão mais preocupados em ver as semidesnudas do Carnaval.

Então, que atitudes tomar? Para começo de conversa, não é para fazer algo pelas mulheres no dia 8 de março! É para começar a fazer no dia 8 de março e continuar para sempre!

E fazer o quê? O melhor é começar tomando conhecimento das atitudes perniciosas que acontecem, que permeiam nosso comportamento sem que percebamos, que permeiam o discurso das pessoas entre si e nos meios de comunicação de massa. E, para isso, o citado post da Sabine é um ótimo recurso.

Mais: não se trata apenas de uma mudança dos homens. Estamos falando da sociedade como um todo. Há todo um condicionamento cultural que vem desde a primeira infância e que introjeta nas mulheres seu "papel" no mundo (por isso a imagem do início deste texto). A maioria das "vocações" femininas são, na vedade, apenas traços culturais transmitidos desde crianças. Isso é feito tanto por homens quanto por mulheres. "É a sociedade que deve mudar, e não só os homens." Quem disse isso foi a israelense Ada Yonath, prêmio Nobel de Química (não por coincidência, numa entrevista para a mesma Sabine Righetti, publicada na Folha).

Para se ter uma ideia da superficialidade com que se tratam as questões "femininas", vejam o que diz a filósofa Marilena Chauí sobre as verdadeiras causas do aborto neste pequeno trecho de vídeo de um programa Roda Viva de 1989 - são só dois minutos. O problema é muito mais profundo do que as atuais tentativas de legislação procuram alcançar.


Protagonismo

Para ilustrar a importância da mudança na postura social, vejam só o que aconteceu no Paraguai após a famosa Guerra do Paraguai de 1864-1870. O país foi totalmente devastado, principalmente pelas tropas brasileiras, a ponto do fim do conflito haver no país quatro quatro mulheres para cada homem, e estes em geral velhos ou crianças. Então, restou às mulheres reconstruir tudo.

O historiador paraguaio Carlos Gómez Florentín estudou isso. Diz ele, textualmente nesta entrevista: "Sem dúvida, as mulheres reconstruíram a nação. (...) As mulheres foram as grandes atrizes econômicas e sociais." Por "atrizes", refere-se ao conceito de "ator social", aquele que "protagoniza" um processo social.

Porém, em seguida, ele emenda: "A pergunta que requer uma explicação (...) é por que não ocorreu o mesmo no plano político. E, secundariamente, por que foram, com o tempo, perdendo esse protagonismo econômico?"

É aí que eu queria chegar. Ouso uma resposta hipotética: decerto porque não houve uma mudança correspondente na postura social. No nível da sua percepção social, as mulheres provavelmente estavam apenas esperando os homens voltarem.

Não foi o único caso do tipo. A imagem logo acima mostra uma mulher operária na fábrica de peças de aviões Consolidated Aircraft Corporation, em Fort Worth, no Texas, EUA, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Quando os homens não estão disponíveis, deixam para suas companheiras fazerem o seu trabalho. Quando voltam, tudo volta a ser como era.

Até quando tudo voltará a ser como era depois de cada 8 de março?

segunda-feira, 7 de março de 2011

Compreender Hannah Arendt

"Compreender: formação, exílio e totalitarismo" (ensaios)
Hannah Arendt

Cia. das Letras e Editora da UFMG

2008


É possivel, para um intelectual, fazer filosofia política para compreender seu próprio inferno? Este livro é uma coletânea de ensaios da filósofa e cientista política alemã Hannah Arendt (1906-1975) que cobre de 1930 a 1954. Começa quando ainda residia no seu país, atravessa o período do terror nazista - era judia - e termina quando ela já estava exilada nos Estados Unidos.

Na verdade, Hannah não gostava que a chamassem de filósofa. Numa entrevista a Günter Gaus, reproduzida no início do volume, disse que trocou essa áera pela ciência política exatamente no dia 27 de fevereiro de 1933, quando o governo de Hitler, recém-instaurado na Alemanha, provocou um incêndio no próprio Parlamento do país para justificar perseguições políticas generalizadas - era o início do terror nazista no país. "Eu me senti responsável. Isto e, não achava mais que se pudesse ser um simples espectador", contou a Gaus.

A partir de então, passou a tentar compreender como pôde acontecer o horror totalitário na Europa - Alemanha, União Soviética e outros países - e a analisar o fenômeno do sionismo. Os ensaios refletem bem essa ruptura. Após alguns estritamente filosóficos no início, logo passa a contemplar majoritariamente temas políticos, muitas vezes envolvendo os totalitarismos.

Hannah não achava que o terror estatal no seu país e na Rússia era uma variante de regimes autoritários que existiam havia séculos, mas sim algo novo e terrível, uma especificidade típica do século XX. Ao falar desses assuntos, estava na verdade se metendo em terreno com reflexos pessoais. Judia, foi perseguida pelo regime e fugiu para a França; pouco depois, a Alemanha invadiu o país e ela foi presa num campo de concentração francês; conseguiu fugir, caminhou algumas centenas de quilômetros a pé até conseguir condução, atravessou a fronteira com a Espanha e zarpou para os Estados Unidos num navio.

A obra de Hannah é, assim, permeada pela sua dimensão pessoal num nível incomum em intelectuais. Outro tema em que não pôde deixar de se envolver foi o feminismo, a condição de ser mulher no meio intelectual de sua época. Mas um elemento importante de sua vida que quase não aparece neste livro - talvez por ser excessivamente pessoal - é sua relação com Martin Heidegger, um caso de amor extraordinário e cinematográfico que sobreviveu mesmo às acusações de compactuação com o regime nazista imputadas ao autor de "O ser e o tempo". O surpreendente retorno de Hannah aos braços do ex-amante, após anos de rompimento por causa do papel de Heidegger dentro da máquina do regime, e superando todos os horrores por que passou, constituem as páginas mais sublimes da biografia escrita por Laure Adler ("Nos passos de Hannah Arendt", editora Record). No entanto, em "Compreender", Hannah dedica a ele apenas um ensaio de exatamente uma página - mas um texto surpreendente, escrito de forma cifrada mas muito belo.

Há no volume também várias resenhas - incluindo, como não poderia deixar de ser, interessantes comentários sobre a obra de Franz Kafka, o profeta do apocalipse totalitário que se abateu sobre a Europa no século XX e talvez de vários aspectos mais sutis da sociedade moderna. O leitor encontrará no livro também alguns ensaios muito atrativos do ponto de vista historiográfico, pois captam percepções sobre certos momentos históricos no calor da hora - como a sua análise sobre o "problema alemão" em pleno 1945, ano do fim da Segunda Guerra.

Há um outro lado muito importante do pensamento político de Hannah pouco abordado nesses encritos, referente ao problema do sionismo. No entanto, a Introdução de Jerome Kohn promete um segundo volume que reúna esses trabalhos. Esperemos.

domingo, 6 de março de 2011

Desabafo de um passageiro de ônibus urbano

Porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata
Mas com gente é diferente...
(Geraldo Vandré, "Disparada")

O que você faz quando um ônibus que você espera simplesmente passa do outro lado da pista, com poucos passageiros, e não pára no ponto? E quando, uns 15 minutos depois, outro ônibus da mesma linha faz a mesma coisa?

Se for em Campinas, ligar para a EMDEC, claro. Só que aí a pessoa do seu lado, no ponto, comenta que sempre faz isso e nunca viu mudança nenhuma...

Bem, foi o que me aconteceu ontem nesta cidade. "Sorte" que eu não tinha nenhum compromisso sério e nem estava em conexão - aqui tem um cartão com o qual você pode pegar mais de um ônibus no intervalo de uma hora; eu teria ultrapassado o limite e teria que pagar R$ 2,85 de novo.

Nesta cidade, Campinas, motoristas de ônibus decidem quando páram ou não nos pontos! O caso é particularmente frequente na linha 3.85, que vai ao shopping Iguatemi. Onde estão os fiscais??

Nesta cidade, Campinas, motoristas de ônibus, ao invés de parar completamente em sinais fechados, ficam dando "soquinhos", freiadinhas seguidas, enquanto as pessoas de pé são sacudidas e têm que se agarrar nos ferros e bancos para não serem lançadas para a frente de dois em dois segundos.

Se alguém faz isso num carro de passeio com alguém do lado, esse alguém em geral olha torto, reclama e diz que aquilo é não saber dirigir! Custa ter um pouco de respeito? Ou melhor, um mínimo?

Esta cidade, Campinas, é o único lugar que conheço onde você tem que se segurar no banco dos ônibus, sentado, para não escorregar pela tangente nas curvas! Porque aqui os ônibus aceleram nas curvas! Nunca vi isso em Belo Horizonte, São Paulo, Curitiba ou qualquer outro lugar onde tenha pego transporte coletivo.

Já vi várias pessoas se machucarem com freadas e aceleradas bruscas, feitas sem motivo aparente. Eu mesmo já arranjei um roxo enorme e dolorido na canela, após uma acelerada afobada.

Nesta cidade, Campinas, ninguém avisa quando uma linha muda de itinerário - e eles mudam frequentemente. Quando acontece, os passageiros ficam parados no ponto feito patetas, perdendo compromissos, tempo e paciência, enquanto o comboio faz outro itinerário. Já aconteceu várias vezes comigo e com gente que conheço.

Ah, sim, claro, dá para tomar informações ligando para a central ou vendo cartazes em alguns terminais. Tenho que ligar para a central todas as vezes que for pegar ônibus, agora??

Nesta cidade, Campinas, as rodas traseiras dos ônibus estão perto da metade do veículo e o asfalto é de uma qualidade horrenda, de modo que os bancos de trás sacodem feito cavalo de rodeio. Aprendi a ficar na ponta dos pés para amortecer e não sentir as ondas de choque através das minhas vísceras. Não admira que haja poças de vômitos ali com tanta frequência.

E, claro, em Campinas, como em quase todos os lugares do país, as pessoas ficam assardinhadas dentro dos ônibus, tendo que esfregar-se, homens em mulheres, mulheres em homens, para conseguir chegar na porta de saída a tempo de descer. Enfrentando suor alheio e falta de ar respirável quando chove e fecham as janelas. Afinal, por que o poder público gastaria mais dinheiro colocando mais veículos se os que já existem já fazem o serviço, isto é, transportar sua carga de um ponto a outro?

Acontece que essa "carga" é de seres humanos! NÃO SOMOS GADO!!!!!
P.S. - A ilustração no início do texto é assinada pelo cartunista português Álvaro.