sexta-feira, 11 de março de 2011

Líbia: a grande inflexão

Impressionante como as percepções sobre o conflito na Líbia mudaram da água para o vinho nos últimos dois dias. Jornalistas e até funcionários da inteligência (como James Clapper, dos EUA) começam a achar que Gadafi vencerá a guerra. Enquanto isso, o avanço das articulações para um bloqueio aéreo, leia-se bombardeio, também parece estar chegando num impasse. A Itália disse que não apoiará intervenção militar. Muito conveniente falar isso agora quando a maré parece virar a favor do ditador líbio - pois, se ele ficar, Roma tem todo o interesse que ele não retalie deixando hordas de refugiados fugidos dos sanguinários conflitos africanos irromperem pelo país adentro. Era Kadafi que os impedia de atravessar o Mediterrâneo, em troca de apoio de Berlusconi.

Já os Estados Unidos estão com todo o aparato militar na frente da costa líbia, mas dizem que só intervirão com apoio da ONU. É possível que, se as forças leais a Gadafi começarem a avançar demais, eles intervenham de qualquer maneira. Mas é possível também que não - e isso indicaria um enfraquecimento da posição geopolítica estadunidense, em relação ao período pré-invasão do Iraque (2003), quando a ONU lhes parecia bem mais "atropelável". Legado do desastroso governo Bush filho. Isso, mesmo que há algumas semanas a União Europeia tenha esperado os EUA romperem com Gadafi para fazer o mesmo, indicando a volta da ascendência estadunidense sobre os europeus, já superada a crise de 2003. Aliás, neste momento, o discurso de Nicholas Sarkozy, o presidente da França, está bem mais belicoso que o de Barack Obama.


Os russos, tem que combinar com os russos!

O Conselho de Segurança da ONU, por sua vez, tem seus famosos cinco membros com poder de veto, entre os quais China e Rússia. Terão eles interesse em chancelar uma intervenção militar? Em especial, o que fará a Rússia? É verdade que ela suspendeu sua venda de armas para Gadafi, mas também é verdade que se aproximou bastante do ditador nos últimos anos. Sim, a Líbia pode ser estratégica para a Rússia. Primeiro, porque é uma cabeça-de-ponte na África e está todo mundo disputando aquele continente - estadunidenses, europeus (estes mais no norte), chineses (no centro e sul), indianos (no sudeste) e até brasileiros (em Angola e Moçambique, principalmente). Quem tem ganas de retomar um pouco da influência em nível global que tinha na Guerra Fria, precisa necessariamente investir na África.

E parece que é isso que a Rússia quer, expandir sua esfera de influência. Isso produz uma disputa com o Ocidente que se manifesta com temperaturas diferentes em diferentes pontos do globo - às vezes incendiando-se, como na guerra com a Geórgia em 2008. Além disso, a Rússia tem se aproximado de alguns desafetos dos EUA, como a Venezuela, e isso pode ser também uma estratégia: já que não tem cacife para disputar com os estadunidenses os países que já estão dentro da sua esfera, os russos fincam "cunhas diplomáticas" onde essa influência ainda não chega com tanta força ou é repelida.

Enfiaram uma na Líbia, de frente para o flanco sul do bloco da OTAN e perto do gargalo do Mediterrâneo entre a Itália e a Tunísia (veja o mapa abaixo). Se a Rússia conseguisse cooptar o norte da África, teria "cercado" o bloco pelo leste e pelo sul. Afinal, a expansão do bloco para o leste está chegando nos seus limites e não é absurdo imaginar que o passo lógico seguinte seria expandirem-se para o sul, para o norte da África - Marrocos, Tunísia e Egito. Mas, com a cooptação de Gadafi, a Rússia meteu uma garfada bem no centro desse filé (e agora as revoltas acabaram com as esperanças de estabilidade e lançaram qualquer esperança da OTAN mais algumas décadas para o futuro).


Massacre aéreo

Quanto aos rebeldes líbios, o grande problema é que sua luta deixou de ser uma guerra de insurgênica - para a qual não existe modelo teórico disponível para garantir vitória das forças regulares - e se tornaram uma guerra mais clássica, com frentes de combate geograficamente definidas - para a qual a receita de bolo é quase infalível: quem tem o domínio dos ares vence e ponto. Foi assim que a Inglaterra evitou ser invadida pela Alemanha na Segunda Guerra: derrotou a Luftwaffe nos ares. É por isso que os EUA bombardeiam implacavelmente seus inimigos antes de qualquer invasão por terra. E eis que Gadafi agora tem o domínio total dos ares em todo o seu território e o usa para massacrar impiedosamente os opositores.

Ou seja, as potências só poderiam evitar o pior com o tal bloqueio aéreo. Mas é possível que os rebeldes colapsem antes do tempo hábil para uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, que precisa de articulações e sondagens prévias de bastidores para se garantir que não haverá um fiasco. Corre-se o risco de, mais uma vez, o Ocidente ficar olhando uma tragédia humanitária e geopolítica acontecer a poucos quilômetros do seu nariz sem fazer nada.

O resultado será péssimo não só para a Líbia, mas para o conceito de multilateralismo: afinal, quando os EUA finalmente resolvem fazer do jeito que lhes dizem que é para fazer - sem ataques unilaterais -, o resultado seria a tragédia. Claro que a conclusão é ilusória - tragédias são os resultados de ações militares unilaterais, como no Iraque em 2003. E há mais: um desfecho pró-Gadafi seria também um sério baque nos movimentos antiautoritários em todo o mundo árabe.

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