O pepino é que muitas vezes os regimes autoritários "ensinam" para esses tipos que certas coisas absolutamente bizarras são normais. E creio que eles constituem uma porção bastante grande da sociedade.
Senão, vejamos. Eu soube que estávamos numa ditadura aos 16 anos, quando acompanhávamos pela TV a apuração das eleições indiretas em 1984 e um tio me deu a preciosa informação.
Como isso pôde acontecer? Dois motivos. (1) Eu não estava nem aí (não lia jornais, achava um saco). (2) Ninguém me disse. É no (2) que se encontra o grande problema. Grande parte da população brasileira simplesmente "entrava no esquema", pois era o modo de se sobreviver nos empregos e nos cargos. Isso significava, muitas vezes, calar-se. Especialmente diante dos jovens.
Mas, enquanto os adultos se calavam, coisas aconteciam ao redor de nós, crianças. Pequenas coisas. Que nos "ensinavam" grandes coisas.
"Não pode."
Vejam só: quando eu era bem pequeno, um familiar teve a brilhante ideia de dar ao seu periquito de estimação, confinado numa gaiola como todo pássaro doméstico, o singelo nome de "Ernesto".
Era a época do presidente Ernesto Geisel, e mesmo a mais inocente das crianças certamente ouvia esse nome soar aqui e ali, introjetava o som e podia repeti-lo ao léu com a consciência de um papagaio. Belo dia, olhei para a ave amarela e verdinha, que me vigiava atenta olhando de lado, e pronunciei: "Ernesssto Gaaaaaisel".
Ao que alguém prontamente advertiu: "O que é isso!? Não pode! Ernesto Geisel é o nome do presidente da Repúúwwblica!"
E foi então que aprendi que chamar um periquito pelo nome do presidente era feio. Associação: não se pode desacatar o presidente.
Parece coisinha besta, mas crianças são (entre muitas outras coisas) esponjas: elas aprendem rapidamente não apenas instruções objetivas, mas modos de agir e de pensar por detrás de atos e palavras. Pergunto-me: o que atitudes como essa ensinavam para a criançada?
Havia o outro lado da moeda. Em Pedro Leopoldo, interior de Minas, havia uma cadeia perto de casa. O pessoal me proibia de passar na frente; tinha que ser sempre na outra calçada. Diziam que, se criança passasse ali, "polícia pega". Mais ou menos como me falavam dos ciganos (de vez em quando aparecia algum perambulando pela cidade com um grande saco branco pendurado nas costas): não era para chegar perto, senão a "dona" jogava a criança no saco e ia embora com ela.
Não sei bem se é por isso que até hoje eu tenho vontade de mudar de calçada se passo na frente de uma delegacia ou se cruzo com um policial, como se se tratasse de um delinquente mal-encarado. (O engraçado é que isso não acontece com soldados do Exército. Não tenho nenhum problema com eles.)
Numa dessas, há poucos anos, exagerei nos "cuidados" e uns caras de um carro de polícia em Brasília acabaram me abordando e me revistando, eu com as mãos numa árvore. Acharam que quem desconfiava tanto de policiais tinha que ter algum esqueleto dentro da mochila.
Educação "de fundo"
Coisas menos "pequenas" também aconteciam ao nosso redor, à nossa vista.
Costuma-se identificar a ditadura com governos. Mas o autoritarismo do Estado tem tentáculos que vão muito além. Infiltram-se pelas instituições de alto a baixo, que reproduzem na sua estrutura a hierarquia e os desmandos e arbitrariedades do topo. A quantidade de gente que participava desse vasto e capilar aparato autoritário era impressionante.
No colégio onde estudei o ensino médio e a maior parte do fundamental, aprendíamos exercícios militares na Educação Física: Cobrir! Sennntido! Meia-volta, volver! Aprendi um truque com os pés para rodar no "meia-volta, volver" que faz meu corpo parecer girar parado. No fim do recreio e logo antes de começarem as aulas, executávamos o que aprendêramos, quando as turmas se concentravam em filas e um inspetor berrava lá na frente: "Cobrir! Firmes! Cobrir! Firmes! Cobrir! Firmes!"
Esse inspetor tinha um nome sonoro - "Schmidt" - e era o terror da turma. Se alguém fazia uma baderna realmente inaceitável durante uma aula, o professor berrava: "Vai pro ximíti!!!", apontando com o dedo para a porta como para enxotar um cão. E lá ia o aluno de orelhas baixas. Só não se sabe se ele rumava mesmo para a sala do dito ou se ia tomar Coca na cantina (uma vez me mandaram para lá e eu juro que fui até a sala do homem - e não aconteceu nada lá).
Havia os que se indignavam e construíam uma reação dentro de si (depois de conversar com certo número de gente, percebi que essas pessoas eram os que liam jornais). Mas havia quem "recebesse" o "ensinamento de fundo" de como se deveria comportar diante de uma autoridade despótica. De qualquer autoridade.
E talvez de como se comportar como autoridade. Quando o professor tinha que se ausentar por qualquer motivo, colocava na frente da sala um aluno cuja função era observar bem a turma e marcar no quadro o nome de quem fizesse alguma coisa errada. A coisa interessante era que, em geral, o aluno se esmerava bastante bem nessa tarefa (claro que alguns avacalhavam gostosamente).
O Schimidt parecia até manso perto de outro inspetor, que também dava aulas de algumas matérias, e que era de um autoritarismo quase demente. Certa vez, irrompeu pela nossa sala, interrompendo a de outro professor, para reclamar que a outra turma (!) tinha feito intolerável algazarra e então passou a chamar-nos de "seus bostinhas!!!", aos gritos, batendo os pés no chão feito uma criança contrariada. Esse estropício também dava aulas de inglês e de... religião (era um colégio franciscano).
Acho que ele representava a versão da escola da "face violenta" do regime. O resto da administração representava a "face Brasil ame-o ou deixe-o".
A moral é cívica, o civismo é moral e tudo é dirigido
E tinha, claro, aquela matéria estranhíssima, Educação Moral e Cívica. Era abordada com o método do "estudo dirigido" - havia um livro com lacunas no texto e tínhamos que preenchê-las. Coisas como "o que é virtude", "o que é Estado" etc. Ou seja, eles "ensinavam" valores morais associando-os por superposição ao conhecimento sobre a estrutura do Estado e do que então era considerado "politicamente correto". Na prova, faziam perguntas que só respondia quem decorava.
O método era tão eficiente que, após quatro anos disso, a única coisa que aprendi foi que "os elementos do Estado são: governo, território e povo". Caiu numa prova e acertei. Espero que tenha sido só isso, mesmo. Mas tenho dúvidas muito sérias a respeito.
Coisa interessante era que o professor de Educação Moral e Cívica era também professor de religião...
(Esse professor, aliás, certa vez desistiu de tudo, vendeu seus bens e passou a vender churros no pátio do colégio, diante dos olhos atônitos dos alunos; depois arrumou um emprego de garçon numa lanchonete árabe - foi o único que vi fazer jus à ascendência franciscana da escola, enquanto os freis de batina andavam de carro).
E aí parecia haver crianças que reagiam desenvolvendo um senso de reação à autoridade agudo e outras que simplesmente aprendiam a obedecer.
Tudo isso me remete a uma coisa terrível, que tem a ver com o que Caetano Veloso falou no show "Circuladô" em Curitiba, antes de cantar "Debaixo dos caracóis" - aquela música que o Roberto Carlos fez para ele quando estava exilado em Londres. Caê referiu-se às origens da ditadura com a expressão, dita bem pausadamente, "coisas vindas de regiões profundas do ser do Brasil".
Quando leio sobre a História do Brasil, tendo muito a concordar com isso. Tem a ver conosco - nós, enquanto nação, enquanto povo. Com certos elementos lá dentro do "ser do Brasil". Sem esquecer, obviamente, das conjunturas históricas, e sem despolitizar a questão. É que isso também faz parte dessas conjunturas. Se esquecermos disso, se acharmos que tudo veio só de uma classe militar com mentalidade "retrógrada", pode acontecer novamente.
De qualquer forma, Caetano logo logo arrematou que a música do Roberto representava manifestações vindas de "regiões igualmente profundas do ser do Brasil".
Obs.: A imagem no início deste texto, retirada de um vídeo do Youtube, mostra a imagem do documento que comprovava a liberação, pela Censura Federal, dos programas de televisão para os horários estipulados. Era apresentada na TV antes de todo programa, com uma voz padrão falando: "Programa liberado pela Censura Federal para este horário". No caso, o balé O Lago dos Cisnes, em 1985, liberado para censura livre.
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