Algo muito - muito! - errado está acontecendo com nossa sociedade.
No início, eu achava que o problema era comigo. Grandes amigos com quem eu tinha bastante intimidade começaram a ter colapsos nervosos, casamentos estourados e coisas do tipo. Troços feios. Uma teve uma crise de depressão e ficou magra como um palito. Outra teve duas crises de pânico aparentemente sem motivo algum. Ambas resolveram com tratamentos psiquiátricos. Uma terceira teve o casamento rompido e anos depois teve uma crise nervosa tão somatizada que ficou um mês prostrada na cama com a saúde em pandarecos. Outra teve um divórcio litigioso - em vários momentos eu achei que ela ia pirar também - e crianças pequenas testemunharam diálogos de cortar o coração. Recentemente, outro estranho episódio parecendo um colapso nervoso que iniciou outro divórcio. Isso sem falar em TDA's e coisas mais leves.
Como eu só via acontecer isso com pessoas de quem gosto muito, sobreveio uma desconcertante impressão de que o meu perfil atraía para o meu círculo mais íntimo pessoas com potencial de pirar na batatinha.
Mas logo percebi que o caso era outro: essas pessoas eram aquelas com as quais eu tinha intimidade suficiente para ter acesso detalhado a esse tipo de informação. Quando falei disso com uma delas, respondeu-me que avaliava que, nas Ciências Sociais da Unicamp, entre estudantes e professores, cerca de 50% tomavam remédio psiquiátrico por algum motivo.
Cinquenta por cento! Isso é uma completa maluquice! Que espécie de sociedade é esta que tem como consequência tamanho grau de violência emocional?
Admirável mundo louco
E por que isso acontece? Esta é a pergunta de um milhão de libras esterlinas. Aí inúmeras variáveis se misturam, dançam na minha cabeça, e não vejo muita luz no fim do túnel. Vejo é muita coisa estranha ao redor. Vejo pessoas apressadíssimas com tudo, trabalhando a mil por hora mesmo quando não lhe é exigido. Vejo pessoas - atendentes, secretários - tendo que suportar desaforos o dia todo sem poder reagir à altura. Uma delas, que eu conhecia, caiu em depressão, ficou dias em off e nesse período pareceu no departamento que toda a tripulação de um navio desapareceu, tamanho foi o caos decorrente.
Vejo a fronteira entre o trabalho e o lazer borrada cada vez mais pelos meios de comunicação eletrônicos. O cara responde e-mails do serviço em qualquer horário, inclusive por celular ou iPad ou sei lá o quê enquanto janta com a filha. Eu senti tamanho desconforto quando usei celular que livrei-me dele. Parecia que eu ficava aceso o tempo todo, não tinha o necessário descanso mental fora do trabalho. Excesso de estado de alerta.
Vou numa lanchonete e há música alta demais, é muito difícil conversar. Sempre há música ou TV alta, a não ser que a conversa das pessoas sobrepuje tudo em decibéis. Não há silêncio. A moçada se defende com papos anódinos, pois é impossível desenvolver argumentos.
Na festa de aniversário de 90 anos de minha tia-avó, aconteceu o cúmulo de eu ter que sair do salão porque meus tímpanos começaram a doer por causa do som altíssimo. E havia gente dançando na frente das caixas de som!!! E ninguém dava a mínima! Achavam normal! Uma prima tentou falar comigo literalmente urrando a um centímetro do meu ouvido com a força que tinha. Única maneira de se fazer ouvir naquela loucura. Impedi-lhe veementemente, pois não penso em dizer adeus a Bach e Tom Jobim tão cedo.
E isso acontece porque a clientela prefere assim. O que é isso, estão querendo substituir a relação social pelo quê, exatamente? Estão fugindo exatamente do quê? Da realidade?
Tudo que é sólido... o que ainda é sólido?
Vejo valores éticos substituídos cada vez mais por valores de mercado. Se esta frase lhe causa estranheza, veja isto. Lembram-se daquelas superchuvas que houve em Florianópolis recentemente? Naquela semana, eu estava lá e fiquei preso na ilha. Todas as estradas bloqueadas. Tive que comprar passagem de avião. Surpresa: para Curitiba, ela havia quadruplicado de preço e chegado a mil reais! Fui para Belo Horizonte, pela metade do preço. Isso, para todas as companhias aéreas. Então, já que as pessoas estão morrendo e precisam desesperadamente fugir, enfia-se-lhes a faca até rasgar o hipotálamo? Não admira que alguns intelectuais qualifiquem nosso sistema capitalista de "sociopata".
Vejo a segurança dos padrões desaparecer sob nossos pés - casamentos, emprego fixo, valores - e parece que muita gente não sabe ainda lidar com isso. Com a ética de mercado solta desembestada, o "sistema sociopata" suga o máximo das pessoas, forçando-as a trabalharem em qualquer horário, com intensidade máxima, como máquinas, ignorando sua humanidade e suas emoções. Teremos de volta, num futuro sombrio, a situação grotesca do início da Revolução Industrial? Naquela época, trabalhadores supercarregados ficavam doentes ou morriam. Agora, entram em depressão, destróem casamentos. Em certos países desenvolvidos, crianças saem atirando em seus colegas.
Será que é de tudo isso que as pessoas querem fugir quando se relacionam de forma cada vez mais passiva com a cultura e com a mídia? Não só com relação à TV e a músicas. Depois do Twitter legitimar e consolidar a linguagem telegráfica na Internet (e o Orkut fazer o mesmo com a completa falta de conteúdo - em suas comunidades, ninguém lê o que os outros escrevem, só telegrafam), depois disso, uma certa rede social chamada Blaving prometeu ser um "Twitter com voz". Justificativa: "Falar é mais fácil que escrever". Uma tuiteira particularmente pensante comentou: "Bom lembrar que grunhir é mais fácil que falar".
Variáveis demais, misturadas, desarticuladas, não respondem minha pergunta principal. Só sei que há algo de muito - muito! - errado com nossa sociedade.
P.S. - A figura do início é o cartaz do filme "Koyaanisqatsi". Da língua indígena hopi, falada no sudoeste dos EUA, a palavra pode ser traduzida aproximadamente por "vida fora do equilíbrio, vida se desintegrando, um estado de vida que clama por outro modo de viver". O que aconteceu com esses índios que os levou a cunhar tal termo - que parece faltar a nós, justo a quem parece fazer mais sentido?
P.S. 2 - Alguns links sugeridos por leitores [17/02/2011]:
- Ana Paula Morales: "Depressão, uma dupla noite", de Moysés Floriano Machado-Filho, do CEP.
- Paulo Roxo Barja: "Diagnóstico de deficit de atenção divide especialistas", de Guilherme Genestretti, na Folha de S. Paulo, reproduzido no blog Significantes.
- Roberto Takata: "Depression: epidemic or pseudo-epidemic?", de Derek Summerfield, Institute of Psychiatry, King's College, London, UK.
- Por coincidência, encontrei este, divulgado no Facebook por Marta Kanashiro: "Hechos breves" sobre la mente y la salud mental, publicado no site da Comisión de Ciudadanos por los Derechos Humanos, entidade preocupada em defender os direitos humanos no campo da saúde mental e a difundir informação sobre a legitimidade dos diagnósticos médicos na área, riscos associados e direitos de recusar tratamentos e de procurar alternativas.
- Simone Figueiredo: "Juventude medicada", de Rosely Sayão, no blog da autora.
Roberto, os dois artigos estão muito bons. Os textos estão escritos de uma forma agradável e bem de acordo com a realidade que vivemos, o que torna a leitura extremamente prazerosa.
ResponderExcluir(1) Isso era o que eu queria! :)
ResponderExcluir(2) Isso era o que eu temia! => ou seja, "bem de acordo com a realidade que vivemos". Eu tinha uma vaga esperança de eu estivesse vendo coisas. Mas acho que é mesmo real. Agora, a pergunta de dois milhões de libras esterlinas é: Como interferir nesse estado de coisas...??
Vou continuar a nossa discusssão do twitter aqui - há menos limitação de espaço.
ResponderExcluirComo disse, não comentarei especificamente sobre seus amigos. Mas quanto ao mundo é difícil dizer se o problema é mesmo dele.
Não temos uma série histórica da incidência de problemas psiquiátricos que nos permita dizer com segurança que haja um aumento de casos.
Os números de hoje, no entanto, podem estar inflados de vários modos.
Profissionais de saúde são influenciáveis pela "moda" e também pelo lobby da Big Pharma. Se uma nova pesquisa surge diagnosticando uma nova enfermidade, eles podem acabar vendo os "sintomas" onde eles não estejam realmente (isso acontece com todo mundo...); há pesquisas q mostram como profissionais da saúde acabam por receitar medicamentos desnecessários por ação de marketing de representantes da indústria farmacêutica. Por outro lado, temos efetivamente diagnósticos mais precisos. Pode não ser um aumento de incidência, mas um aumento na capacidade de detecção.
Além disso, parte disso pode se dever na verdade a uma *melhoria* das condições sociais. O que antes era considerada uma variação normal, agora se destaca e é considerado um comportamento inadequado. Um exemplo não patológico: no séc. 18 era considerado normal explorar mão-de-obra infantil, hoje é um crime. Se examinarmos registros criminais apenas talvez tenhamos a impressão de que houve um aumento na exploração das crianças.
Tudo isso considerado e mais outros detalhes, simplesmente é difícil dizer se há mesmo uma 'epidemia' de problemas psiquiátricos e, particularmente, da depressão.
[]s,
Roberto Takata
Então... o que fiz no meu texto foi literalmente extrapolar minhas observações pessoais para o mundo ao redor - supondo que seria coincidência demais uns 70% dos meus amigos mais íntimos terem piripaques emocionais na minha frente. Na verdade, não falei em diagnósticos em nenhum ponto. Estou falando "do mundo", sim, mas a partir dessa extrapolação. Extrapolações assim são arriscadas, mas a coincidência é significativa.
ResponderExcluirE são arriscadas pelas razões que você apontou e porque pode ser, p. ex., problema local de Campinas - ou mesmo vir de eu atrair pessoas com potencial para isso (afinal, sou um cara com um pé fora do Sistema cercado por gente com a mesma característica em algum grau - e lutar contra o Sistema, digamos, "dá nos nervos").
No entanto, também observo as bizarrias apontadas no corpo do texto. Talvez isso sirva como motivação para pesquisadores verificarem correlações essas coisas - se é que já não o fizeram.
A propósito, aos outros leitores, a Ana Paula Morales sugeriu este texto:
http://www.univesp.ensinosuperior.sp.gov.br/preunivesp/656/depress-o-uma-dupla-noite.html
"Depressão, uma dupla noite"
"Apesar de ainda haver quem a considere um problema menor, a doença é considerada um flagelo de nossa época, assim como em outras o foram a tuberculose ou a peste bubônica"
Ao qual apareceu no Twitter a crítica "o texto tem o problema da falta de série temporal para comparação" - ou seja, será que é um problema novo ou simplesmente estamos vendo para algo que não olhávamos antes? Será que a depressão impacta a nossa sociedade mais hoje que antigamente?
Olá... uma coisa que está acontecendo - e é terrível, caso de polícia: tem havido superfaturamento de doenças. Enfatizo que esta é uma opinião pessoal, embasada em (algumas) leituras, principalmente sobre TDAH.
ResponderExcluirVejam, por exemplo:
significantess.blogspot.com/2010/09/diagnostico-de-deficit-de-atencao.html
e os trabalhos da dra. Maria Aparecida Moysés, professora de pediatria da Unicamp.
Abraços!
Ainda sem fazer qualquer análise sobre seus amigos - por duas boas razões: 1) não sou capacitado pra isso; 2) não tenho conhecimento da situação deles - episódios de profunda tristeza e desarranjo da vida cotidiana são mais do que o esperado - sem que isso implique em quadro depressivo.
ResponderExcluirDepression: epidemic or pseudo-epidemic?
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1383767/
--------
[]s,
Roberto Takata
Gostei demais dos contrapontos a este post! Isso é ótimo, senão fica um monólogo.
ResponderExcluirAcrescento mais duas coisas:
Um: Outro dia peguei um livro recente (não consegui recuperar qual, tenho que voltar à estante da livraria) sobre transtornos mentais, uma espécie de manual que tinha uma lista de casos e dava ênfase na dificuldade de diagnóstico, devido ao fato de que muitos deles - TDAs, por exemplo - se manifestam de formas diferentes dependendo do paciente, sendo difícil fechar um quadro da mesma forma que se fecha em doenças somáticas mais comuns, e que há transtornos com sintomas semelhantes, mas que devem ser abordados de forma diferente.
Dois: há algum tempo fui num dermatologista em BH para ver se detia queda de cabelo e, quando comecei a falar, ele rapidamente me empurrou um remédio; aí continuei, pois eu tinha um histórico de seborréia com características específicas; logo ele me *interrompeu* e me empurrou outra coisa; continuei a falar e ele me empurrou um terceiro tratamento. O que é isso? Decerto vontade de ganhar dinheiro atendendo o maior número possível de pacientes por dia... Isso para dermatologia, uma área em que você literalmente vê o pepino - erupção etc. - na sua frente. Imagine o que acontece numa área de diagnóstico "fluido" como a psicologia... Não admira que haja relatos de médicos classificando qualquer coisa de depressão à primeira vista talvez só para depachar o paciente o mais rápido possível, confiando nas probabilidades. Assim um surto real de comportamentos disfuncionais - não necessariamente depressão, nem uma coisa só - se transforma numa falsa inflação.
O perigo é, obviamente, o tratamento errado - para não dizer na análise errada das suas causas sociais. Creio que há em nossa época transtornos muito reais reais. Mas são complexos e variados, pois suas causas são muito complexas - vide meu post. É muito confortável dar um nome ao balaio todo e achar que pronto, está tudo resolvido. Mas a realidade costuma ser muito menos simples.
(Ah, sim: ignorei aquele dermatologista e nunca mais voltei.)
Por coincidência, encontrei este link, divulgado no Facebook por Marta Kanashiro:
ResponderExcluir"Hechos breves" sobre la mente y la salud mental
http://www.cchr.mx/quick-facts/introduction.html
publicado no site da Comisión de Ciudadanos por los Derechos Humanos, entidade preocupada em defender os direitos humanos no campo da saúde mental e a difundir informação sobre a legitimidade dos diagnósticos médicos na área, riscos associados e direitos de recusar tratamentos e de procurar alternativas.
Outra jornalista científica, Simone Figueiredo, chamou-me a atenção para este texto:
"Juventude medicada"
http://blogdaroselysayao.blog.uol.com.br/arch2010-01-16_2010-01-31.html
de Rosely Sayão, no blog da autora, com uma montanha de comentários.
Pôxa, veja só como são as coisas: li tudo isto e já tenho vontade de comentar minhas agruras. É, estou no time. Criei um blog pra coisas que me deixam feliz ou me fazem sentir uma pessoa melhor do que eu era ontem, e fico dias - semanas - sem saber o que postar. E acordo todos os dias tentando me convencer de que é mesmo necessário levantar e viver. Foram muitos os fatores que me trouxeram a este paradigma, mas creio que uma boa síntese é sofrer violência psicológica (formas variadas de desrespeito verbal e atitudinal) cotidianamente, trabalhar na realidade estabelecida de que a cada vez que isso acontece, a responsabilidade é minha e em última instância concluir que contribuo para a perpetuação de uma sociedade medíocre, já que sou proibida de tomar todas as atitudes que considero corretas para sanar os problemas - graves! - que presencio. Essa não é a única resposta, não é sequer minha única resposta. Mas considero uma das importantes. E espero que o auxilie a encontrar a sua.
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