terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A literatura africana contando sua história

Tenho lido uns contos e romances africanos. Dos de língua portuguesa, Mia Couto (moçambicano) e José Luandino Vieira (angolano). São textos surpreendentes. Em "Estórias abensonhadas", do Mia Couto (este moço à esquerda), há contos muito bonitos, coalhados de neologismos como o do título. Só para dar um gostinho, vejam como começa "O poente da bandeira":
"Aurorava. O sol dava as cinco. As sombras, neblinubladas, iam espertando na ensonação geral. No topo das árvores, frutificavam os pássaros. Toda madrugada confirma: nada, neste mundo, acontece num súbito. A claridade já muito espontava, como lagarta luzinhenta roendo o miolo da escuridão. As criaturas se vão recortando sob o fundo da inexistência. Neste tempo uterino o mundo é interino. O céu se vai azulando, permoeolhável. Abril: sim, deve ser demasiado abril. Agora, que a aurora já entrou neste escrito, entremos nós no assunto."
E segue-se o conto. Inevitável que esses belos experimentos vocabulares façam um brasileiro se lembrar de Guimarães Rosa - mas o estilo e o conteúdo são muito diferentes. Vários dos textos tratam da brutalidade da guerra e da opressão de policiais e soldados da época do controle português sobre o Moçambique (que durou até 1975). Mas a narrativa é feita de uma forma delicada que se coloca em total contraste com os acontecimentos narrados, realçando-os de uma forma quase desconcertante.


Literatura e história

É comum na literatura africana que os autores ambientem suas narrativas historicamente. Afinal, são obras produzidas em países multiétnicos e politicamente jovens, em busca de suportes históricos que legitimem um sentimento nacional - tarefa complexa, pois as fronteiras atuais jamais existiram antes da colonização européia. O historiador inglês Eric Hobsbawn popularizou o conceito de "construção da nação", feita por meio de referências históricas e culturais, alinhavadas num processo de "construção das tradições" nas quais os Estados-nação modernos embasam sua identidade enquanto "povos". O processo aconteceu no Ocidente a partir de meados do século XVIII. Estaríamos testemunhando, nessa pujança da literatura africana, uma espécie de "construção da nação" hobsbawniana em andamento?

O angolano Luandino (este senhor à esquerda) é particularmente interessante no aspecto histórico, pois ele começou a publicar em 1954, quase sempre com um estilo que hoje resgata percepções e ambientações de tempos idos de seu país - e não parou mais. Em casos assim, a literatura complementa a historiografia transmitindo percepções, o que a ciência histórica dificilmente consegue fazer.

O período coberto por Luandino é o da formação da entidade política "Angola". O ano de 1954 está no fim da época da consolidação dos movimentos de emancipação das colônias francesas e britânicas - três anos depois, Gana tornava-se o primeiro daqueles países a obter a independência. A atividade de Luandino passou então pela grande frustração angolana do iníco dos anos 1960, quando as possessões portuguesas não conseguiram a emancipação, ao contrário de quase todo o resto da África. Atravessou a guerra contra os dominadores que se seguiu a partir de 1960. Testemunhou o abandono português de Angola em 1975, após a Revolução dos Cravos na metrópole, e a subsequente guerra civil sangrenta. Chegou ao fim da guerra em 2002 e segue pelo período de reconstrução adentro.

É a longa e tortuosa história da formação de um país contada sob o ângulo da literatura. Comecei lendo o primeiro livro, “A cidade e a infância”, de contos, e quero ver se continuo cronologicamente para acompanhar isso. Excitante possibilidade!

Em tempo: Este post é um desenvolvimento de um comentário que fiz para outro post da Raquel Cozer no seu blog, que fala da recente e súbito aumento da popularidade dos autores africanos lusófonos no Brasil - mas sem o fenômeno correspondente da literatura brasileira em Portugal e na África.

No comentário, eu citei também Chinua Achebe, nigeriano. Absolutamente fascinante. Qualquer dia falo dele por aqui.

2 comentários:

  1. Nem preciso dizer q não entendo lhufas de literatura africana - na verdade de literatura.

    Só digo que quando falam nisso o que me vem à mente é algum escritor negro - como muitos outros artisas: e.g. cantores. (Com exceção, claro, de se me dizem especificamente da África do Sul.)

    Serão os principais escritores da África subsaariana descendentes de colonizadores zoropeus?

    []s,

    Roberto Takata

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  2. Acho que isso pode ser uma especificidade das ex-colônias portuguesas (fora a África do Sul). Ao contrário dos ingleses e franceses (exceção para Argélia), Portugal deu ênfase à colonização branca nos seus domínios (os brancos da África do Sul são descendentes de colonos holandeses que chegaram antes dos ingleses). Os negros tornavam-se cidadãos de segunda classe. Isso devia intensificar a ação da "peneira racial" automática na hora de aceitar estudantes africanos na metrópole (os grandes escritores luso-africanos estudaram em Portugal). Ainda mais com um regime ditatorial de timbre fascista (que, no entanto, terminou em 1974, antes que, p. ex., José Eduardo Agualusa, outro famoso escritor angolano branco, nascido em 1960, se tornasse universitário).

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